terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Luiz Gonzaga Belluzzo* - O poder das ideias ou as ideias do poder?

- Valor Econômico

É impressionante a semelhança entre a forma como os think tanks conservadores guiavam remotamente Trump

Na edição de 1º de janeiro, a jornalista Patrícia Campos Mello, na alvorada de 2021, brindou seus leitores com um artigo sobre o mea-culpa do empresário americano Charles Koch no livro “Believe in People”. Charles e seu irmão David, falecido em 2019, formaram a dupla mais conhecida de ricaços americanos financiadores dos think tanks de extrema direita. Certamente herdaram o DNA do pai Frank, criador da John Birch Society.

Charles proclamou no livro: “Rapaz, a gente estragou tudo. Que confusão!” Patrícia escreve que com essa singela frase de mea-culpa, Charles Koch, o bilionário americano financiador de causas conservadoras, tenta limpar sua barra. Em “Believe in People”, Koch discorre sobre como o sectarismo está empurrando os partidos para os extremos, com ideologias e políticas destrutivas. E pergunta: “A América pode sobreviver como país se nossos cidadãos desprezam uns aos outros?”.

Coincidentemente, o escritor italiano Marco D’Eramo publicou em 2020 o livro “Domínio” que trata das estratégias adotadas pelos empresários conservadores nos Estados Unidos para enfrentar a guerra das ideias. D’Eramo usa propositadamente a expressão “guerra de ideias” e não debate de ideias. Ele justifica a escolha depois de analisar o manual da contrainteligência das Forças Armadas Americanas. Reza o Manual: “A forma cultural mais importante para as forças Coin (contra-insurgência) é entender a narrativa... Narrativas são os meios pelos quais as ideologias são expressas e absorvidas pelos indivíduos em uma sociedade [...]. Ouvindo narrativas, as forças Coin podem identificar o núcleo dos valores-chave da sociedade"

A questão mais interessante e intrigante, diz D’Eramo, é que os generais da Marinha ao escreverem o Manual assumem, na língua e no jargão das ciências sociais as duas teses fundamentais que o filósofo marxista francês Louis Althusser havia expressado há 50 anos: a) "A ideologia é uma 'representação' da relação dos indivíduos com suas condições reais de vida"; b) "cada ideologia tem como função 'constituir' indivíduos em sujeitos" (no caso do Manual em "sujeitos de insurreição").

D’Eramo vai ao ponto ao afirmar que ainda carregamos uma ideologia, quer queiramos ou não. É por isso que ninguém pode dizer a frase "Eu não sou ideológico". Quando você não adere voluntariamente a uma ideologia, você inadvertidamente adere a ela, "respira" ideologia. E a ideologia geralmente nega ser ideológica, vive em sua própria negação, atribuindo ideologia a todas as outras "representações".

Pois os grandes empresários americanos compreenderam a importância da guerra das ideias. Em 1973, D’Eramo conta que a grana do cervejeiro Joe Coors abriu as portas da Heritage Foundation que se tornaria um dos mais importantes think tanks conservadores. A maior parte das doações fluíram da família Mellon Scaife, à qual foram adicionados os Bradleys, os Kochs, os Richardsons Smith.

Vamos seguir Marco D’Eramo sem abusar das aspas. Ele prossegue e registra o impressionante crescimento dos guerreiros ideológicos. “No início dos anos 1980, os financiadores Heritage incluíram as divisões blindadas do capitalismo dos EUA: Amoco, Amway, Boeing, Chase Manhattan Bank, Chevron, Dow Chemical, Exxon, General Motor, Mesa Petroleum, Mobil Oil, Pfizer, Philip Morris, Procter & Gamble, R.J. Reynolds, Searle, Sears, Roebuck, SmithKline Beecham, Union Carbide e Union Pacific.”

Nos anos 80, Ronald Reagan e sua frase famosa, “O Estado é o problema, não a solução” sentaram no Salão Oval da Casa Branca.

D’Eramo sugere que as histórias de Reagan e Trump se parecem: Ronald Reagan e Donald Trump são dois outsiders. Reagan um ator de segunda linha de Hollywood, Trump um empreendedor imobiliário que oscilou entre sucessos e vários fracassos. Tornou-se famoso como estrela de televisão graças a um reality show.

Ambos considerados totalmente ignorantes e inadequados para a presidência e candidatos ao impeachment após alguns meses; ambos eram considerados não confiáveis pela extrema direita, mas não foram deixados ao léu após a eleição. Foram assistidos e guiados. É impressionante a semelhança entre a forma como os think tanks conservadores guiavam remotamente Trump e a maneira como controlavam Reagan. O termo "guiado" deve ser entendido em sentido literal: por exemplo, em 3 de julho de 2020, o título do artigo de abertura no site da Heritage Foundation: The Nation under Attack - What we must do to stop the left socialist agenda. No dia seguinte, em um comício nos arredores de Mount Rushmore, Dakota do Sul, Donald Trump afirma que "o país está sob cerco do 'fascismo de extrema-esquerda'. Mas é sobretudo sobre o programa do governo que a influência do Heritage é exercida: " nossas recomendações políticas foram adotadas pelo governo Trump", afirmou a Heritage Foundation orgulhosamente em seu Relatório Anual de 2017, divulgado em maio de 2018. Com falso pesar, algumas páginas depois, sob o título "O Preço do Sucesso", Heritage acrescentou: "Tivemos que dizer adeus a um número de pessoas notáveis em 2017. O governo Trump nos surpreendeu e nos fez perder mais de 70 de nossos apoiadores." A conivência foi repetida no ano seguinte (2019): "64% das nossas prescrições políticas foram incluídas no orçamento de Trump".

Derrotado Trump, vicejam esperanças nas alas mais progressistas do Partido Democrata. Esperanças que buscam em Joe Biden um herdeiro de Franklin Delano Roosevelt.

Roosevelt acreditava nos mercados administrados e no controle do capitalismo. O New Deal não era bem visto pelos graúdos do establishment americano. Naturalmente, era visto com horror por J.P. "Jack" Morgan, o júnior. Em 1935, a multidão de desempregados e empobrecidos vivia dos programas de obras públicas e de assistência social do Estado. Ao desembarcar de uma viagem à Europa, ainda a bordo do Queen Mary, o herdeiro de John Pierpont proclamou: "Todos os que ganham dinheiro nos Estados Unidos trabalham oito meses por ano para sustentar o governo".

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp

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