É
impressionante a semelhança entre a forma como os think tanks conservadores
guiavam remotamente Trump
Na edição de 1º de janeiro, a jornalista Patrícia Campos Mello, na alvorada de 2021, brindou seus leitores com um artigo sobre o mea-culpa do empresário americano Charles Koch no livro “Believe in People”. Charles e seu irmão David, falecido em 2019, formaram a dupla mais conhecida de ricaços americanos financiadores dos think tanks de extrema direita. Certamente herdaram o DNA do pai Frank, criador da John Birch Society.
Charles
proclamou no livro: “Rapaz, a gente estragou tudo. Que confusão!” Patrícia
escreve que com essa singela frase de mea-culpa, Charles Koch, o bilionário
americano financiador de causas conservadoras, tenta limpar sua barra. Em
“Believe in People”, Koch discorre sobre como o sectarismo está empurrando os
partidos para os extremos, com ideologias e políticas destrutivas. E pergunta:
“A América pode sobreviver como país se nossos cidadãos desprezam uns aos
outros?”.
Coincidentemente,
o escritor italiano Marco D’Eramo publicou em 2020 o livro “Domínio” que trata
das estratégias adotadas pelos empresários conservadores nos Estados Unidos
para enfrentar a guerra das ideias. D’Eramo usa propositadamente a expressão
“guerra de ideias” e não debate de ideias. Ele justifica a escolha depois de
analisar o manual da contrainteligência das Forças Armadas Americanas. Reza o
Manual: “A forma cultural mais importante para as forças Coin
(contra-insurgência) é entender a narrativa... Narrativas são os meios pelos
quais as ideologias são expressas e absorvidas pelos indivíduos em uma
sociedade [...]. Ouvindo narrativas, as forças Coin podem identificar o núcleo
dos valores-chave da sociedade"
A questão mais interessante e intrigante, diz D’Eramo, é que os generais da Marinha ao escreverem o Manual assumem, na língua e no jargão das ciências sociais as duas teses fundamentais que o filósofo marxista francês Louis Althusser havia expressado há 50 anos: a) "A ideologia é uma 'representação' da relação dos indivíduos com suas condições reais de vida"; b) "cada ideologia tem como função 'constituir' indivíduos em sujeitos" (no caso do Manual em "sujeitos de insurreição").
D’Eramo
vai ao ponto ao afirmar que ainda carregamos uma ideologia, quer queiramos ou
não. É por isso que ninguém pode dizer a frase "Eu não sou
ideológico". Quando você não adere voluntariamente a uma ideologia, você
inadvertidamente adere a ela, "respira" ideologia. E a ideologia
geralmente nega ser ideológica, vive em sua própria negação, atribuindo
ideologia a todas as outras "representações".
Pois
os grandes empresários americanos compreenderam a importância da guerra das
ideias. Em 1973, D’Eramo conta que a grana do cervejeiro Joe Coors abriu as portas
da Heritage Foundation que se tornaria um dos mais importantes think tanks
conservadores. A maior parte das doações fluíram da família Mellon Scaife, à
qual foram adicionados os Bradleys, os Kochs, os Richardsons Smith.
Vamos
seguir Marco D’Eramo sem abusar das aspas. Ele prossegue e registra o
impressionante crescimento dos guerreiros ideológicos. “No início dos anos
1980, os financiadores Heritage incluíram as divisões blindadas do capitalismo
dos EUA: Amoco, Amway, Boeing, Chase Manhattan Bank, Chevron, Dow Chemical,
Exxon, General Motor, Mesa Petroleum, Mobil Oil, Pfizer, Philip Morris, Procter
& Gamble, R.J. Reynolds, Searle, Sears, Roebuck, SmithKline Beecham, Union
Carbide e Union Pacific.”
Nos
anos 80, Ronald Reagan e sua frase famosa, “O Estado é o problema, não a
solução” sentaram no Salão Oval da Casa Branca.
D’Eramo
sugere que as histórias de Reagan e Trump se parecem: Ronald Reagan e Donald
Trump são dois outsiders. Reagan um ator de segunda linha de Hollywood, Trump
um empreendedor imobiliário que oscilou entre sucessos e vários fracassos.
Tornou-se famoso como estrela de televisão graças a um reality show.
Ambos
considerados totalmente ignorantes e inadequados para a presidência e
candidatos ao impeachment após alguns meses; ambos eram considerados não
confiáveis pela extrema direita, mas não foram deixados ao léu após a eleição.
Foram assistidos e guiados. É impressionante a semelhança entre a forma como os
think tanks conservadores guiavam remotamente Trump e a maneira como
controlavam Reagan. O termo "guiado" deve ser entendido em sentido
literal: por exemplo, em 3 de julho de 2020, o título do artigo de abertura no
site da Heritage Foundation: The Nation under Attack - What we must do to stop
the left socialist agenda. No dia seguinte, em um comício nos arredores de
Mount Rushmore, Dakota do Sul, Donald Trump afirma que "o país está sob
cerco do 'fascismo de extrema-esquerda'. Mas é sobretudo sobre o programa do
governo que a influência do Heritage é exercida: " nossas recomendações
políticas foram adotadas pelo governo Trump", afirmou a Heritage
Foundation orgulhosamente em seu Relatório Anual de 2017, divulgado em maio de
2018. Com falso pesar, algumas páginas depois, sob o título "O Preço do
Sucesso", Heritage acrescentou: "Tivemos que dizer adeus a um número
de pessoas notáveis em 2017. O governo Trump nos surpreendeu e nos fez perder
mais de 70 de nossos apoiadores." A conivência foi repetida no ano
seguinte (2019): "64% das nossas prescrições políticas foram incluídas no
orçamento de Trump".
Derrotado
Trump, vicejam esperanças nas alas mais progressistas do Partido Democrata.
Esperanças que buscam em Joe Biden um herdeiro de Franklin Delano Roosevelt.
Roosevelt
acreditava nos mercados administrados e no controle do capitalismo. O New Deal
não era bem visto pelos graúdos do establishment americano. Naturalmente, era
visto com horror por J.P. "Jack" Morgan, o júnior. Em 1935, a
multidão de desempregados e empobrecidos vivia dos programas de obras públicas
e de assistência social do Estado. Ao desembarcar de uma viagem à Europa, ainda
a bordo do Queen Mary, o herdeiro de John Pierpont proclamou: "Todos os
que ganham dinheiro nos Estados Unidos trabalham oito meses por ano para
sustentar o governo".
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
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