Com regulamentações, a busca do lucro que move empresas pode aumentar as doses disponíveis
A
campanha de vacinação contra a Covid-19 terá de seguir critérios técnicos para
ter sua máxima eficácia: vacinar prioritariamente idosos, pessoas com
comorbidades, profissionais da saúde e etc. E tem de ser oferecida
gratuitamente, de modo a proteger toda a população.
Conforme
afirmado pelo Ministério da Saúde, clínicas
privadas que apliquem a vacina terão que se pautar pela mesmo ordem de
prioridades do SUS. Mas é claro que, no setor privado, um outro critério
também entra em jogo: o econômico, a possibilidade do paciente pagar pela
vacina. Isso tem feito com que vozes se levantem contra clínicas privadas que
buscam vender doses da vacina.
Um
ponto a crítica tem: como a demanda por vacinas de Covid é muito superior à
oferta, a competição entre setor público e privado pode ser destrutiva.
Se um lote de um fabricante que poderia ser comprado pelo governo for comprada por uma empresa privada, esse lote deixará de ser aplicado da forma mais eficaz e justa. Isso é um argumento para não deixar que empresas privadas concorram livremente com o governo pelas doses escassas disponíveis no mercado.
Mas
e se a empresa privada comprar lotes de laboratórios que não estavam sendo
negociados pelo governo, como é o caso da compra
de 5 milhões de doses da vacina Covaxin (de uma farmacêutica indiana) pelo
grupo privado ABCVac? Essas doses não reduzirão as doses aplicadas pelo
sistema público; são 5 milhões de doses adicionais que só estarão disponíveis
graças às empresas que foram atrás.
Nesse
caso, mesmo que o critério de aplicação da clínica não seja puramente técnico
(e paute-se também por considerações econômicas), ela trará benefícios à
sociedade: mais pessoas serão imunizadas, aumentando a segurança para todos.
Além disso, aqueles que pagarem pela vacina aliviarão o SUS, pagando do próprio
bolso a dose que, caso contrário, seria paga com recurso público. Sobrarão mais
recursos para atender a quem não tem recursos.
Não
há motivo para ser contra isso. Se o governo proibir a clínica de vacinar a
população, teremos 5 milhões de doses a menos e o orçamento do SUS mais
sobrecarregado. Qual a ética de uma decisão dessas? O melhor, então, é limitar
a atuação privada a laboratórios ou lotes que o governo não tenha a intenção de
negociar.
Esse
raciocínio valeria para qualquer governo, mas é especialmente relevante no
governo atual. Temos um governo federal quase inoperante, que deixou milhões
de testes perderem a validade esquecidos num galpão, que foi incapaz
de prever a demanda
por seringas para uma campanha nacional de vacinação na pandemia e
ainda não comprou vacina nenhuma.
Some-se
à incompetência logística a campanha
verdadeiramente perversa do presidente contra a vacinação. Mesmo um
defensor aguerrido da saúde exclusivamente estatal deve se perguntar: será uma
boa deixar a pandemia 100% aos cuidados do governo Bolsonaro?
Se
estados e empresas privadas não estivessem se mexendo para conseguir vacinas
por conta própria, a letargia do governo federal seria ainda maior.
Sem
dúvida, o setor público tem que ser o carro-chefe de qualquer esforço bem
sucedido de vacinação nacional. Com algumas regulamentações, contudo, a busca
do lucro que move empresas pode aumentar as doses disponíveis para a população.
Rejeitá-lo por ser supostamente impuro ou injusto em si mesmo é um dogmatismo
suicida.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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