Não
cabe mais perguntar que governo é este. A resposta está dada. O Brasil chega ao
seu pior número diário de vidas perdidas, em um ano de pandemia, com o colapso
se espalhando pelos estados, e o presidente Bolsonaro dizendo que a máscara é
que é o risco. O que cabe agora é tentar saber que país é este. Quem somos nós?
De que matéria somos feitos? O futuro perguntará aos contemporâneos dessa
tragédia o que fizemos. Enquanto os brasileiros morriam, o inimigo avançava
impiedosamente e o governo era sócio da morte.
No dia das 1.582 vidas perdidas, ou da queda de cinco Boeings, como comparou o cientista Miguel Nicolelis, qual era a cena no Brasil? A Câmara dedicava horas seguidas à emenda que protege os parlamentares dos crimes que vierem a cometer. O Senado debatia a retirada do financiamento da Saúde e da Educação. Por serem pontos tão absurdos, as duas Casas ensaiaram recuos. E o presidente da República? Ele, como fez todos os dias desse último ano, na sua macabra mesmice, atirou contra a saúde dos brasileiros. Desta vez, dizendo que uma universidade alemã tem um estudo que prova um tal risco do uso de máscaras em crianças. Sempre assim, negando as provas da ciência, falando de algum suposto remédio. Sempre mentindo, o presidente do Brasil.
Bolsonaro
nós sabemos quem é. Ele quer que haja armas e munições, quando precisamos de
leitos e vacinas. Ele exibe desprezo pela vida, quando precisamos de empatia e
conforto diante desse luto vasto e irremediável. O luto dos enterros sem
flores, sem abraços, sem consolo. Contamos nossos mortos numa rotina fúnebre e
interminável. O presidente conta as armas com as quais os seus seguidores vão
nos ameaçar se eventualmente reagirmos.
Quem
somos nós? O futuro nos perguntará e é preciso que o país saiba que terá que
responder que, mais uma vez, fomos o povo que tolerou o intolerável. Como na
escravidão, no genocídio dos índios, na ditadura, na desigualdade temos
aceitado a afronta, a vilania, a infâmia. Castro Alves pode fazer de novo a
pergunta: que bandeira é esta?
Essa
é a nossa contemporaneidade. Lembra os nossos piores passados. É tão longo o
suplício que perdemos as palavras. Não há palavras fortes o suficiente para
definir o que vivemos. O presidente comete crimes diariamente. A cada crime sem
punição ele se fortalece, porque sabe que pode avançar um pouco mais. Como o
vírus que domina o corpo fraco. A cada dia fica mais difícil contê-lo.
De
outros países, nos olham com espanto e desprezo. Nenhum povo suportaria tal
opróbrio. Eles sabem o que temos feito aqui e o que temos aceitado. E não
entendem. Caminhamos para o risco de colapso nacional, de falência múltipla dos
órgãos de saúde do país. Só agora, alguns estados falam em lockdown.
Antes, havia no máximo uma restrição de circulação à noite, como se o vírus
fosse noturno e dormisse de dia. Vários países começam a comemorar queda dos
contágios, internações e mortes. Comprovam vantagens do distanciamento social,
das vacinas e do uso de equipamentos de proteção. O presidente diariamente
passeia, diletante, pelo país, com seu séquito de homens brancos sem máscaras,
com os quais exerce o poder, oferecendo-lhes migalhas do seu mandonismo. São os
invertebrados de Bolsonaro.
O
médico Ricardo Cruz escreveu para Denise, sua mulher, “prepare-se para o pior”.
O pior chegou para a sua família e para o país. Ricardo Cruz era amado por seus
colegas e pacientes. Organizou um centro de reflexão sobre as angústias que
vivemos neste século e o batizou de “humanidades”. O último recado digitado por
ele, mostrado por este jornal em brilhante reportagem, é um alerta vivo.
Estamos no pior momento. Despreparados.
O presidente da República mente diariamente e as mentiras estão nos matando. Bolsonaro não se interessa por pessoas, mas por perfis das redes, inúmeros deles falsos. Em colunas passadas, fiz a lista dos crimes cometidos por Bolsonaro e apontei artigos e incisos das leis que ele afrontou. Mas isso o país já sabe. Alguém sempre diz que não existem as condições políticas para um impeachment. E os milhares de mortos que enterramos? Quantos deles teriam sido poupados se fosse outro o governo do Brasil? Não cabe mais perguntar que presidente é este. O país não pode alegar desconhecimento. Cabe fazer uma pergunta mais dura. Quem somos nós?
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