Sem
conhecer seus cidadãos, governo se perde na pandemia
A
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar ações e omissões
do governo federal no enfrentamento da pandemia inicia seus trabalhos nesta
semana e assim o espetáculo da política se arma, com a plateia, dividida,
pronta para acompanhar cada lance com balde de pipoca e refrigerante.
Apurar
responsabilidades diante da maior tragédia social da história brasileira
recente, com quase 400 mil mortos até o momento, sem dúvida é necessário - e
mais do que isso, é algo que se faz urgente há tempos. Mas apenas isto não
basta.
Seguindo
o roteiro de outras CPIs do passado, preparem o F5 de seus teclados para
atualizar, em curtos espaços de tempo, as notícias em tempo real dos
depoimentos, denúncias e manobras de ambos os lados da política buscando
incriminar ou isentar o presidente da República pelo colapso na saúde.
Independentemente do veredito final da CPI - isso se ela vier a chegar a algum desfecho, visto que a maioria das investigações morre sem qualquer conclusão -, é muito provável que continuaremos sem discutir as causas estruturais de nosso fracasso e as lições que podemos extrair desta crise.
A
chegada ao Brasil do novo coronavírus expôs de modo flagrante muitas das nossas
fragilidades. Do desequilíbrio fiscal que reduziu a margem de manobra para
políticas de resgate social e econômico à distribuição irregular de leitos de
UTI ao longo do território nacional, a pandemia demonstrou que as falhas do
governo atual apenas agravaram problemas que são crônicos no Estado brasileiro.
Na
polêmica conversa com o senador Kajuru, Bolsonaro pedia sua ajuda para “fazer
do limão uma limonada”. Na lógica do inquilino atual do Palácio do Alvorada, a
frase significava usar a CPI atual para se blindar e, ainda por cima, colocar
na mira ministros do STF e governadores e prefeitos que lhe desagradam.
Além
da apuração dos responsáveis pela CPI, a verdadeira limonada a ser extraída
diante de centenas de milhares de vidas e milhões de empregos perdidos é
corrigir as deficiências que nos empurraram ainda mais fundo no precipício
atual.
Das
múltiplas dimensões que precisam ser estudadas, em “homenagem” à recente
decisão governamental de sepultar de vez a realização do Censo em 2021,
direcionarei aqui o foco para a questão do uso de dados e da tecnologia para
obter resultados melhores nas políticas públicas.
Há
poucos dias o Ministério da Saúde informou que em torno de 1,5 milhão de
pessoas ainda não apareceu para tomar a segunda dose de vacinação. Dezenas de
estudos de economia comportamental realizados mundo afora demonstram que a taxa
de comparecimento cresce de maneira significativa caso o cidadão receba uma
cutucada (“nudge”) por ligação telefônica ou mensagem de texto lembrando-o de
retornar ao posto de saúde na data certa.
Essa
alternativa simples, barata e altamente eficaz poderia estar sendo adotada em
massa em todo o país caso o SUS dispusesse de um prontuário médico digital
abrangente e atualizado de toda a população - mas isso não existe em escala
nacional.
No
caso do sistema de transportes urbanos (um dos principais vetores de
contaminação das pessoas mais pobres), estratégias de ação podem ser traçadas
com a utilização de dados do fluxo de passageiros, frequência ao longo do dia e
itinerários. Essas informações estão disponíveis para a maioria das prefeituras
das grandes cidades brasileiras, pois são utilizadas para a auditagem e cálculo
de reajuste de tarifas das empresas de ônibus. Com uma articulação com o
empresariado, soluções podem ser construídas para minimizar o sofrimento de
milhões de pessoas mesmo após a pandemia.
Outra
dimensão que não podemos deixar passar em branco é a falência do sistema
público de ensino no país. Passado mais de um ano do início da pandemia - com a
omissão injustificável dos ministérios da Educação, das Comunicações, da
Cidadania, da Ciência e Tecnologia e de todas as demais pastas que deveriam coordenar
uma resposta à situação - a maioria das secretarias estaduais e municipais não
foram capazes de utilizar e fornecer respostas tecnológicas para diminuir o
abismo entre os alunos mais pobres e seus semelhantes mais ricos que frequentam
o sistema privado.
Para
não ficar só no que deveria ou poderia ter sido feito, vai aqui um exemplo
concreto de como o governo pode explorar o potencial revolucionário da
tecnologia em benefício dos brasileiros.
Na
terça-feira eu fazia uma caminhada pelas ruas da Savassi, em Belo Horizonte,
quando fui parado por um vendedor de balas, que me pedia ajuda para comprar
comida. Respondi com o tradicional “me desculpe, mas estou sem carteira” (o que
naquele dia era a mais pura verdade, pois eu só tinha o celular e um cartão de
crédito no bolso da bermuda). Ele, porém, me respondeu: “Você pode me pagar com
Pix”.
Implantado
pelo Banco Central em novembro de 2020, o novo sistema de pagamentos
instantâneo contava, em março passado (último dado disponível), com 75,6
milhões de pessoas físicas e 5 milhões de empresas cadastradas. Naquele mês
circularam pelo Pix R$ 101,8 bilhões de pessoa para pessoa, R$ 85,7 bilhões
entre empresas, R$ 28,4 bilhões de empresas para indivíduos e R$ 21,5 bilhões
no sentido contrário.
O
sucesso do Pix, que em poucos meses se popularizou e chegou até mesmo às
camadas mais pobres de nossa população, não vem por acaso. Essa inovação foi
desenvolvida cuidadosamente pelos técnicos do Banco Central ao longo dos
últimos anos, com todos os seus aspectos tecnológicos e regulatórios discutidos
amplamente com o sistema financeiro, não sendo interrompido pelas eleições ou
pela troca de comanda na instituição.
Trata-se,
infelizmente, de um ponto fora da curva. Basta lembrar que, após o lançamento
da primeira etapa do auxílio-emergencial, o ministro da Economia se surpreendeu
com os quase 40 milhões de “invisíveis” que teriam sido descobertos pela equipe
econômica.
Com
a decisão de não realizar o Censo Demográfico neste ano, Paulo Guedes reafirma
que o governo brasileiro prefere continuar conduzindo o país às cegas.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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