Por causa das
ineficiências econômicas, a palavra “fila” caracteriza o dia a dia dos
brasileiros, mas por causa da injustiça social não se percebe os que estão fora
das filas, de um lado e outro da escala de rendas. Alguns porque não precisam
se submeter a elas, graças a privilégios e dinheiro, outros porque não têm o
direito de entrar nelas. No meio, imprensados, os da fila, ignorando os
extremos. Nós nos acostumamos a ver com naturalidade os que não precisam e
ainda mais os que não conseguem entrar nas filas, por tratá-los como
invisíveis.
No setor da saúde, nos indignamos com os que tentam furar a fila para tomar vacina, mas não percebemos a injustiça quando furam a fila ao usar dinheiro para o atendimento médico de um pediatra para o filho, de um dentista e de profissionais de todas as outras especialidades que não estão disponíveis no SUS, com a urgência necessária. Apesar do nome, o sistema nacional de saúde não é único: de um lado, tem o SUS com suas filas; e, do outro, o SEP - Sistema Exclusivo de Saúde - sem fila para os que podem pagar.
Todos condenamos os fura-fila do SUS para tomar vacina, mas todos aceitamos que se fure a fila nas demais especialidades médicas, inclusive cirurgias, por meio do uso do dinheiro. Em alguns casos, há reclamação quando a fila se organiza por um pequeno papel numerado, mas não se protesta quando, perto dali, o atendimento é imediato, porque no lugar do papel com o número da fila usa-se papel moeda. Aceita-se furar fila graças ao dinheiro. Nem se considera como fura fila. São os fora-fila, aceitos por convenção de que o dinheiro pode comprar saúde.Na moradia,
alguns entram na fila do programa Minha Casa Minha Vida; outros não precisam,
compram diretamente a casa que desejam e podem; outros também não entram na
fila, porque não têm as mínimas condições de financiamento.
O mesmo vale para
a educação. Em função do coronavírus, o Brasil descobriu que algumas boas
escolas, em geral pagas e caras, com ensino remoto, computadores e internet em
casa, permitem que alguns cheguem ao ENEM com mais possibilidade de aprovação
do que outros. Apesar de que a aprovação é conquistada pelo mérito do
concorrente, os aprovados se beneficiaram da exclusão de muitos concorrentes ao
longo da educação de base.
A desigualdade na
qualidade da escola desiguala o preparo entre os candidatos, como uma forma de
empurrar alguns para fora e outros para a frente da fila. De certa forma,
alguns furaram a fila para ingresso na universidade, por pagarem uma boa escola
ainda na educação de base. E não há reclamação porque os fora da fila são
invisíveis, porque não concluíram o ensino médio, ou concluíram um ensino médio
sem qualidade que não lhes deu condição sequer de sonhar fazer o ENEM.
Tanto quanto os
que não podem pagar o transporte público não entram na fila do ônibus, os
analfabetos (12 milhões de brasileiros) não entram na fila do ENEM para
ingresso na universidade. Foram
excluídos da formação, por falta de oportunidade para desenvolver o talento no
momento oportuno da educação de base, e, por isso, ficam impedidos de disputar,
por mérito, uma vaga na universidade.
Ninguém fura fila
para chegar à seleção brasileira de futebol, porque todos tiveram a mesma
chance. A seleção é pelo mérito, graças ao fato de que a bola é redonda para
todos, independentemente da renda.
Temos a
preocupação de assegurar os mesmos direitos para obter vacina, não o mesmo
direito para a qualidade e a urgência no atendimento de saúde e de educação,
independentemente da renda e do endereço da pessoa. Nem ao menos consideramos
que há injustiça em furar fila usando dinheiro para ter acesso à educação e à
saúde de qualidade. É como se fosse normal furar fila por se ter muito dinheiro
e normal ficar fora da fila por falta total de dinheiro. No meio, ficam os que,
por pouco dinheiro, ficam na fila e se indignam com os que tentam desrespeitar
a ordem, sem atentar para os fora da fila nos carros, ou os fora da fila
caminhando. Os primeiros aceitamos pelas leis do mercado, os outros tornamos
invisíveis.
*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília
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