segunda-feira, 19 de abril de 2021

José Augusto Guilhon Albuquerque* - Entre mandatário dos brasileiros e porta-voz dos militares, 'son coeur balance'

- O Estado de S. Paulo

Quem eventualmente sucederia a Bolsonaro, o vice moderado ou o general incendiário?

O general Hamilton Mourão, sucessor imediato do presidente da República, é hoje o principal ponto de sustentação de Bolsonaro. Pretextos não faltam para encerrar legalmente o mandato do chefe do Executivo. A classe política, em cujas mãos está o poder constitucional para fazê-lo, nada decidirá enquanto não souber qual dos discordantes perfis que o vice-presidente ostenta herdaria o poder presidencial.

As últimas manifestações do general, a partir de 31 de março, data que os nostálgicos da ditadura preferem adotar, para eternizar a memória do golpe militar de 1964, retratam Mourão como esteio das Forças Armadas. Em sua manifestação naquela data – em ambiente pleno de tensão, provocada pela verdadeira humilhação imposta por Bolsonaro aos comandantes das três Forças Armadas – o general comemorou a grande dádiva civilizatória e democrática do golpe militar para os brasileiros.

Dias depois – o que permite supor que os dois gestos se completam – publicou no Estado (3/4) um artigo laudatório sobre a superioridade da “competência logística e organizacional” dos militares em relação do restante da administração pública. E foi além, promoveu um claro amálgama entre o governo militarizado de Bolsonaro e algo mais que, a seu ver, “a sociedade brasileira espera de seus militares”; a primeira missão seria o envolvimento da farda com as escolhas feitas, como, segundo ele, nas eleições de 2018: “condenação da corrupção (...) retomada do desenvolvimento e (...) combate à violência”.

Seria um alívio pensar que os militares idealizados pelo general assumiriam, como missão civil, colaborar na gestão de um governo que nada tem que ver com o atual. Porque nenhum governo anterior manifestou tão abertamente a falta de compromisso com o combate à corrupção e à violência e com a retomada do desenvolvimento.

De que país, de que planeta, Mourão estava falando? Talvez tenha sido do “regime instalado em 1964 que fortaleceu a representação política pela legislação eleitoral, que deu coerência à União e afastou os militares da política”. Da ditadura oriunda do golpe de 64 é que não se trata.

Brevemente, apenas para não distorcer, em tão poucas palavras, tanta História, a atuação militar no sistema político foi notável: extinguiu os partido políticos existentes e criou dois partidos por decreto. Não satisfeitos, os militares criaram três legendas (micropartidos) dentro dos partidos que eles mesmos haviam criado e mudaram as regras para dividir a oposição, fragmentando o sistema partidário. Quanto à Federação e à coerência da União, transformaram, com um par de canetadas, quatro Territórios dependentes da União em Estados igualmente dependentes da União, e mais dois Estados no Centro-Oeste.

Resultado: nada menos que 18 senadores a mais, 20% do Senado. Para se afastar da política os militares não contaram com o regime, mas com sua própria percepção de quanto a instituição pagou por se envolver na competição pelo poder, assumindo os riscos de corrupção e a perda da confiança popular. Quanto ao “regime instalado em 1964”, este levou 21 anos para entregar o poder a quem de direito.

Longe está o perfil bonachão, objetivo e empenhado em políticas públicas. Longe também o perfil conciliador, que estende a mão para o diálogo e se apoia em intelectuais. O mesmo se pode dizer do perfil consistente e hábil que diverge publicamente do presidente, sem crítica nem confrontação. A opinião pública, especialmente a chamada classe política, tem ouvidos acurados, para ouvir a voz do povo (não necessariamente para atendê-lo), e olhos ainda mais bem treinados, para observar a conduta dos poderosos. Quem seria eventualmente chamado a suceder a Bolsonaro, o vice-presidente moderado ou o general incendiário do tempo do Clube Militar?

Levemos em conta que, dada a antecipação da campanha de 2022, todos estamos aflitos, antes da hora, na expectativa do resultado das próximas eleições. Mas não o Centrão, para o qual não é relevante saber quem será eleito, pois quem quer que seja precisará comer na mão dessa minoria de veto sem compromisso com a Nação. Além disso, sem compromisso com a estabilidade do governo, ou com a solvência do Tesouro Nacional.

Do ponto de vista do Centrão, essa minoria que hoje controla o Congresso, o custo de esperar 2022 seria menor que o de encerrar, às escuras, o mandato de Bolsonaro. Mas para Mourão a continuidade do atual presidente no Planalto até 2022 significaria o encerramento de sua carreira política.

Para se manter como peça relevante no cenário nacional, Mourão não precisaria de uma grande estratégia. Bastaria deixar claro que um eventual governo seu não seria a continuidade do governo Bolsonaro. Tudo o que teria a perder seria o que já não tem, o protagonismo que caberia ao seu cargo, o apoio político e financeiro para enfrentar os problemas da Amazônia ou a lealdade do presidente... Muito pouco, portanto.

Quanto ao País, não há dúvidas de que sua sobrevivência como nação não resistirá à deterioração crescente do desgoverno de Bolsonaro.

*Professor titular de Ciência Política e Relações Internacionais da USP

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