‘O
barulhento Dionísio, convém não esquecer, é ao mesmo tempo o deus do amor e da
morte.’ O alerta do sociólogo Michel Maffesoli, em “A sombra de Dionísio”,
tornou-se mais atual do que nunca nesta nova Era da Peste. Na madrugada do
domingo do carnaval que não houve, 14 de fevereiro, um repórter de São Paulo
registrou, caprichando na precisão: “As mais de 237.489 mortes não conseguiram
deter realizadores de bailes funk, nos bairros de Itaquera e Guaianases”. Somos
os mesmos que nossos ancestrais do século 14.
A
Peste chegou à Europa em 1348, junto com embarcações dos comerciantes italianos
provenientes do Mar Negro e de Bizâncio. Espalhou-se rapidamente, seguindo as
rotas comerciais: cidades do Mediterrâneo, Europa Central e, na sequência, o
Norte e as planícies russas. Tudo isso até 1352. As festas da Peste foram
documentadas por cronistas da época.
Cerca de um terço da população europeia, algo em torno de 8 milhões de almas, pereceu em apenas uma década. Depois, a epidemia repicou várias vezes, em ondas sucessivas que voltaram a afligir cidades já açoitadas. Os habitantes de Florença logo entenderam os perigos da aglomeração humana, como relata Giovanni Boccaccio (1313-75) no “Decamerão”. Bactérias só foram observadas três séculos mais tarde, mas já se sabia, à época, que a água era fonte de infecções. Tal como na Peste do Vírus dos nossos dias, os ricos fugiram rumo às suas villas, no entorno rural, distanciando-se dos “ares pestilentos”.
Os
demais — comerciantes, artesãos e o proletariado original —ficaram, por falta
de alternativa. E morreram, às centenas, diariamente. A morte distingue
classes, mas, paradoxalmente, opera como grande evento nivelador, que lembra a
todos sobre a vanidade da vida. No século da Peste, emergiram, em diferentes
pontos da Europa, representações da “Dança Macabra” em que cardeais, príncipes
e damas dançam com esqueletos.
Dança
e vinho. A festa, celebração da dialética entre vida e morte, acompanhou a
pandemia, tanto nas villas do isolamento quanto nas cidades pestilentas.
Festejava-se por ainda viver. Rompiam-se as regras para confrontar a morte ou
desafiar Deus. Hoje, atribuímos a Covid-19 ao vírus — isto é, às armadilhas da
seleção natural. Na peste bubônica, como alguns o fazem ainda agora,
creditava-se o horror à vontade de Deus, que castigava os humanos ímpios. Daí,
um passo adiante, alguns chegavam à descrença.
Gargalhar
na cara do inevitável, do Juízo Final. Dançava-se ao som da música não
religiosa, que florescia em formas inovadoras, como o rondó e a balada. Sob o
medo da morte, o frenesi da festa resgatava as interações socais que conferem
sentido à vida. A música secular difundiu-se justamente no rastro da Peste,
rodando as engrenagens do individualismo moderno, com seu “eu lírico”.
Triunfo
de Dionísio, o feio e coxo, sobre Apolo, certinho e áureo. Vida e morte: as
festas dionisíacas originais, da velha Grécia, terminavam com o sacrifício um
tanto violento de um boi, que seria comido por todos num grande ato de
restauração e congraçamento. Na festa, “o que importa é a pulsão irreprimível
do querer viver que, ao manifestar-se, não mais receia assimilar as ‘pequenas
mortes’ sucessivas — ‘sabendo’ que, assim, se protege ritualmente de uma morte
social bem mais inquietante” (Maffesoli). Carpe diem.
As
autoridades medievais bem que tentaram controlar, mas fracassaram. Os escassos
cronistas da época concordam na avaliação de que o comportamento das pessoas
ficou pior, não mais piedoso. Dizem, hoje, cenhos carregados, que aglomerar
para trabalhar é virtuoso, mas a aglomeração de folguedos atenta, no mínimo,
contra um protocolo sanitário e moral. Na Peste, nem todos festejavam. Havia,
claro, os que se fechavam nas igrejas, rezando pelo perdão divino — e
contribuindo igualmente para os contágios. Os cultos coletivos, antes como
agora, não foram proibidos.
Pandemias
são continuidade, mais que ruptura. A Grande Peste medieval ajudou a descolar o
indivíduo da coletividade, a disseminar a economia monetária e sua riqueza
portátil. A festa é parte dessa história, tão antiga e tão próxima.
**Historiadora
e editora-executiva do site 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos
Nenhum comentário:
Postar um comentário