É
surreal a polêmica que ocorre no Supremo, no momento mais dramático da
pandemia, que registrou 3.829 mortes por covid-19 e 92.625 novos casos nas
últimas 24 horas
O
julgamento iniciado, ontem, no Supremo Tribunal Federal (STF), com o voto
contrário do relator, ministro Gilmar Mendes, à liberação de celebrações
religiosas presenciais, como cultos e missas, em razão da pandemia da covid-19,
extrapola a crise sanitária e diz respeito à existência de um Estado laico e
sua relação com a sociedade no Brasil. A ideia da separação entre a política, o
Estado, e a religião, ou seja, as igrejas, não é um assunto tão pacificado como
deveria, embora preconizada por Nicolau Maquiavel, em O Príncipe, desde o
século XVI.
A discussão na Corte foi provocada por liminar do ministro Kassio Nunes Marques a favor da liberação dos cultos, a pretexto de defender a liberdade religiosa, acolhendo pedido da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos. Sua decisão acabou confrontada por outra liminar, do ministro Gilmar Mendes, em favor do governo de São Paulo, que proibiu as celebrações em razão das medidas de distanciamento social para combater a pandemia.
Há
jurisprudência do Supremo reconhecendo as prerrogativas de governadores e
prefeitos para agirem dessa forma, mas não há súmula vinculante. A novidade é o
entendimento de três aliados do presidente Jair Bolsonaro, com viés
“terrivelmente evangélico”: o ministro Nunes Marques, indicado por
Bolsonaro, o mais novo integrante da Corte; o advogado-geral da União, André
Mendonça, que citou várias vezes a Bíblia e nenhuma vez a Constituição de 1988
no julgamento; e o procurador-geral da República, Augusto Aras, que também
deveria defender o caráter laico do Estado, mas adotou uma linha juridicamente
enviesada.
“As
pessoas têm o direito de professar sua fé, direitos e garantias são postos em
defesa do cidadão contra o Estado e não em favor do Estado contra cidadãos. A
ciência salva vidas; a fé também”, argumentou Aras, em defesa da liberação de
cerimônias religiosas em todo o país. O procurador-geral da República disputa
com o advogado-geral da União a indicação, pelo presidente Jair Bolsonaro, para
a vaga do ministro Marco Aurélio Mello no STF. O decano da Corte se aposentará
em 5 de julho.
Essa
polêmica é surreal, pois ocorre no momento mais dramático da pandemia, que
registrou, nas últimas 24 horas, 3.829 mortes por covid-19 e 92.625 novos
casos, aumentando o número de óbitos pela doença para 340.776. O total de casos
confirmados se aproxima de 13,2 milhões. O Supremo já assegurou autonomia aos
estados e municípios para que tomem medidas de combate ao coronavírus, mas a
decisão é questionada pelo presidente Bolsonaro.
Berlin
sustenta que o indivíduo só é livre na medida em que nenhum outro homem, ou
grupo, interfira em suas atividades. O julgamento ocorre na fronteira entre as
vidas privada e pública. A ideia de liberdade positiva tangencia o conceito de
liberdade civil de Rousseau: “Quanto mais eu obedeço a lei civil, mais livre eu
sou, já que ajudo a elaborá-las”. Simplificando, é como se dissesse que, para o
próprio bem, o indivíduo não está sendo coagido.
A
Constituição de 1988, fortemente influenciada pelo liberalismo radical do
deputado Ulysses Guimarães, pautou-se por outro pensador inglês, Stuart Mills,
para quem devemos ter “liberdade na busca pelo nosso próprio bem, da forma que
melhor nos apetece, desde que isso não interfira na possibilidade de os outros
fazerem o mesmo”. O indivíduo pode até ser livre para causar dano a si mesmo,
mas não aos outros; dependendo das circunstâncias e dos interesses da maioria,
a liberdade pode ter limitações. Esse é o xis da questão na crise sanitária,
que Bolsonaro não está levando em conta.
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