Verás
teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder
1
– Profanarás o Estado laico.
A
maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos
extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da
República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da
Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a
novela Os Dez Mandamentos,
produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a
EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem
abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na
comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe
desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV
Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de
coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do
dízimo do erário.
2
– Transformarás a política em
fanatismo.
A
mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de
formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do
neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo
judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da
fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da
autocracia.
Moisés,
na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com
Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança
exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A
novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.
3 – Xingarás a ciência de bruxaria.
Na
cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode
salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não
são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da
natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor
morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A
ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a
democracia é uma tentação demoníaca.
4
– Invocarás o nome de Deus em
vão, sim, Senhor.
O
mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como
se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará
crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro,
vivos. Depois, mortos.
5
– Não te compadecerás dos que
padecem no abandono.
Dizendo
de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a
embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua
vaidade.
6
– Não honrarás a verdade dos
fatos.
O site da TV Brasil promete
sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta
de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio,
paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”.
Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A
propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto
isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não
passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto
leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um
embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores,
intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos
covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.
7
– Matarás.
Ele
se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da
praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém,
ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era
permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça,
incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença,
eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos
vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.
8
– Conspurcarás todas as
profecias.
Trazida
para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o
propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios
divinos. O que pode haver de mais antimoderno?
9
– Amaldiçoarás pensamentos e
desejos.
Nada
que não seja a obediência tem status de
virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a
não ser o do chefe.
10
– Não amarás a ninguém, mas
adorarás a ti mesmo.
Na
novela, um Moisés fake.
Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de
levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram
quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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