O capitão Jair Bolsonaro deixou o Exército depois de ser absolvido em um tribunal militar, mas nem por isso evitou a porta dos fundos. É um episódio revelador. Nos anos 80, foi acusado de planejar a explosão de bombas em quartéis, na Academia Militar das Agulhas Negras e na adutora do Guandu, responsável pelo abastecimento de água no Rio de Janeiro. Mesmo com depoimentos e laudos demonstrando sua participação no caso, foi liberado pelo Superior Tribunal Militar. Assim, pôde construir uma carreira política como porta-voz dos interesses das baixas patentes.
Em
sua lida no Congresso, o deputado-capitão se fez acompanhar por figuras como o
ex-policial militar e faz-tudo Fabrício Queiroz. Durante anos, rendeu
homenagens a — e empregou nos gabinetes da família Bolsonaro — parentes de PMs
acusados de envolvimento com as milícias do Rio de Janeiro, entre os quais o
agora famoso matador de aluguel Adriano da Nóbrega. Milícias, nunca é demais
lembrar, são grupos de policiais que se desviam de sua função para cometer
crimes e impor suas próprias leis à margem do Estado.
Nada disso era segredo para o generalato. Já nos anos 90, Ernesto Geisel classificou Bolsonaro como um mau militar, alguém “completamente fora do normal” para a carreira. O ex-presidente e general dizia acreditar que, à medida que o país se desenvolvesse, a interferência do Exército na política diminuiria.
Geisel
não viveu para ver o engajamento dos militares na campanha de Bolsonaro. Ao
subir a rampa do Planalto, o capitão tinha a seu lado o general Hamilton Mourão
e outros sete fardados, em ministérios normalmente ocupados por civis. Desde
então, dezenas de militares da ativa e da reserva foram nomeados para o segundo
escalão, e mais de 2.500 aceitaram cargos na administração pública.
Enquanto
buscava cooptar a nata da instituição militar, Bolsonaro governava para as
baixas patentes e para as milícias. Nos últimos dois anos, tentou fazer passar
no Congresso leis que facilitam a posse de armas e ampliam as situações em que
um policial pode matar sem ser punido. Nada disso incomodou as Forças Armadas.
Para os militares, milícias e segurança pública são um não assunto, coisa
menor, de polícia, e não de Exército.
Os
militares se consideravam contemplados pelos cargos e pela defesa que o
presidente sempre fez de sua atuação no período da ditadura. Havia alinhamento,
também, em pontos doutrinários considerados cruciais, como o conservadorismo
nos costumes e a soberania do Brasil sobre a Amazônia. Quando cobrados por
alguma barbaridade professada pelo capitão, os generais diziam, à miúda, que
eram apenas bravatas sem consequência. E se empenhavam em explicar que quem se
envolvia na política eram as pessoas, nunca a instituição.
Ou
os generais tinham perdido a capacidade de análise, ou preferiram acreditar no
que mais lhes convinha. Mais de uma vez, o capitão demonstrou não só com
palavras, mas com gestos, julgar que o Exército lhe devia respaldo para além de
suas funções constitucionais. Desde o início da pandemia, toda vez que se viu
em apuros, Bolsonaro ameaçou com uma revolta dos fardados.
O
roteiro se repetiu nesta semana. Ao mesmo tempo que o capitão demitia toda a
cúpula da Defesa, seus acólitos tentavam emplacar uma narrativa falsa para inflamar as polícias estaduais. A
morte de um PM de Salvador, depois de atirar contra colegas num surto psicótico,
foi travestida, nas redes bolsonaristas, de ato heroico de revolta contra o
distanciamento social. Derrotado nessa questão no Supremo Tribunal Federal,
Bolsonaro apelou ao Congresso que lhe desse poderes para interferir nos
governos estaduais. Perdeu de novo.
O
último capítulo da crise mostra que, por superestimar também sua ascendência
sobre as Forças Armadas, o presidente deu a elas a chance de confrontá-lo. Não é um detalhe que,
antes de ser demitidos, os comandantes tenham deixado vir a público a intenção
de entregar os cargos em protesto contra a mão pesada de Bolsonaro. Além disso,
o Alto-Comando do Exército conseguiu alçar à chefia o general Paulo Sérgio
Nogueira de Oliveira — que implantou regras de distanciamento social no
Exército e foi apontado como um dos pivôs da irritação de Bolsonaro com o
ex-ministro da Defesa.
Para
os códigos da caserna, foram reações enfáticas. Mas estão longe de ser atos de
heroísmo. A história mostra que, por mais que não queiram admitir, os militares
são sócios da obra bolsonarista. Sob o pretexto de não atuar na política,
silenciaram diante da falta de compostura institucional, das mortes e do
desgoverno criado por Jair Bolsonaro. Se reagiram agora, é porque até mesmo
seus largos limites foram ultrapassados. Antes assim.
Quem sabe os militares passem a cortar na raiz as bravatas golpistas, ajudando a fortalecer a democracia. E o vaticínio de Geisel ao final acabe se cumprindo, ainda que por linhas tortas.
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