quinta-feira, 1 de abril de 2021

Maria Cristina Fernandes - Bolsonaro entrincheirado

- Valor Econômico

Trocas reforçam proteção da família, mas a das Forças Armadas ricocheteou

A maior crise militar já vista desde a redemocratização decorreu de um presidente da República que se entrincheira para proteger os filhos. O buraco começou a ser cavado em 16 de março, quando o Superior Tribunal de Justiça validou a troca de informações entre o Coaf e o Ministério Público no inquérito das “rachadinhas” que investiga Flávio Bolsonaro. Três semanas antes, a defesa do senador tinha conseguido anular sua quebra de sigilo fiscal e bancário. Partiu para enterrar o inquérito, mas perdeu por 3 votos a 2. No governo, atribui-se o placar à ação sobre o STJ de ministros do Supremo que, mantendo o inquérito aberto, preservam também cartas na manga contra o presidente.

Começou ali a ser traçada uma reforma destinada a levantar barricadas em defesa do presidente e de sua família. A ideia era levar o Supremo a refazer suas pontes com o Planalto, colocar o Centrão para a antessala de Bolsonaro, reforçar o Estado policial e mostrar às Forças Armadas quem é o comandante-em-chefe. Todas as trocas ministeriais tiveram este vetor, o de fortalecer o núcleo duro da trincheira bolsonarista. Só a das Forças Armadas, como demonstrou a escolha dos novos comandantes, richocheteou contra o presidente.

A imitar Fernando Collor, que montou um ministério de notáveis para se segurar, optou por um governo de amigos, à la Jânio Quadros, com a diferença de que predominam nulidades no seu círculo de amizades. As mudanças, porém, não haviam sido planejadas para a semana seguinte à escolha de Marcelo Queiroga, outro apadrinhado da família, para a Saúde.

Como as insatisfações do Centrão prosseguissem, a ideia de uma reforma mais ampla invadiu o fim de semana, mas foi o tiroteio do domingo à tarde nas redes sociais, entre o ex-chanceler Ernesto Araújo e a senadora Kátia Abreu (MDB-TO), que precipitou as outras trocas.

Obrigado a abrir mão de um chanceler que o chamava de “querido chefe”, o presidente detonou a reforma no modo trincheira. Começou por levar para o Itamaraty um embaixador que nunca chefiou posto no exterior mas, na condição de assessor especial da Presidência, conciliava os desejos do deputado Eduardo Bolsonaro.

Com a saída de José Levi da Advocacia-Geral da União, queimado pela recusa a subscrever a ação do presidente contra o “lockdown” nos Estados, Bolsonaro privou o Supremo de seu principal elo com o Planalto. A nomeação do delegado da Polícia Federal Anderson Torres, que se aproximou da família Bolsonaro quando atuou como assessor parlamentar pró-endurecimento penal, deu ao Ministério da Justiça as condições de operar um Estado policial do bolsonarismo. Sindicalista da PF, leva para o governo, porém, a luta interna da bancada da bala no Congresso.

Um esboço do Estado policial apareceu no projeto de lei do líder do PSL, Vitor Hugo (BA), que dá poderes a Bolsonaro sobre polícias estaduais. Ainda que não passe, o projeto, que o vice Hamilton Mourão define como “pura espuma”, cumpre a função de manter mobilizadas células bolsonaristas das polícias militares Brasil afora. A da Bahia entregou não apenas a execução de Adriano da Nóbrega, ex-PM bolsonarista da milícia carioca, como o motim do fim de semana.

O antecessor de Torres, André Mendonça, que voltou para a Advocacia-Geral da União, mostrava-se menos apto para operar este Estado policial. Ainda almeja o Supremo mas ganhou um novo concorrente. O presidente do STJ, Humberto Martins, outro candidato à vaga, causou má impressão no presidente em um café da manhã no Alvorada, mas um antigo postulante, o ex-secretário-geral da Presidência e atual ministro do TCU, Jorge Oliveira, voltou à roda. A derrota do ministro Kassio Nunes na suspeição do ex-juiz Sergio Moro, que abriu mais uma porta para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022, mostrou o imperativo da retaguarda bolsonarista na Corte. Como o passe para a trincheira é a lealdade, Oliveira, ex-assessor de Bolsonaro e de Eduardo, além de padrinho de casamento do deputado, voltou ao jogo.

Para operar o tráfico das emendas parlamentares, alucinógeno que mantém a base governista alheia aos danos ao país causados por sua permanência no mandato, Bolsonaro levou para a Secretaria de Governo a deputada Flávia Arruda (PL-DF). Ex-presidente da Comissão do Orçamento que furou o teto, a deputada tem a missão de lembrar aos mercenários de fora da trincheira que não existe almoço grátis. Apadrinhada por uma joint venture entre PL, PP e Republicanos, Flávia também é a candidata natural a mensageira daqueles que buscarão a porta de saída se deixados sem almoço. Entre um crime de responsabilidade e um buraco alargado no Tesouro a opção de Bolsonaro parece óbvia. Avalistas desta pajelança, como Arthur Lira, podem nutrir seus peões até 2022, mas perderão o lugar duramente conquistado à mesa dos comensais da Faria Lima.

Nenhuma dessas mudanças levou mais militares para governo. Talvez porque já não haja quatro estrelas dispostos a emprestar sua biografia à aventura bolsonarista. O último a entrar foi o almirante Flávio Rocha, que acumula a Secretaria de Assuntos Estratégicos, a Secretaria de Comunicação e o inútil atributo da moderação. Foi em sua antessala que um banqueiro, recentemente convidado para um café no Planalto, recebeu o apelo para convencer o presidente para mudar de canal. Se a missão foi, de fato, cumprida, o mandatário deu de ombros.

A instalação de Luiz Eduardo Ramos na Casa Civil coroa o entrincheiramento. O ministro acumula queixas entre colegas da ativa, seja pela maneira como o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e outros generais foram defenestrados, seja pela carta branca que adquiriu para as nomeações no segundo escalão da Esplanada.

A última e mais trepidante das trocas de Bolsonaro, a do ministro da Defesa, foi tiro que saiu pela culatra. A escolha de oficiais que se envolveram diretamente nas ações de combate à pandemia para os comandos só demonstra a saia justa do ministro da Defesa, Walter Braga Netto. Comandará o Exército o general que o presidente da República quis punir por ter alertado para a terceira onda da covid-19. O ministro precisou ceder para liderar as Forças depois da situação desconfortável em que foi colocado com a demissão de Azevedo e Silva e do trio de comandantes.

Desfez-se mais cedo do que gostaria a fantasia do dispositivo militar bolsonarista, o que não significa que o presidente tenha desistido da guerra.

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