sexta-feira, 11 de junho de 2021

César Felício - De zero para 10%

- Valor Econômico

Mesmo sem fazer sentido, hipótese de golpe é avaliada

Diz o bom senso que o que não faz sentido é improvável. Em se tratando de Brasil, é bom delimitar com clareza a fronteira entre o improvável e o impossível. O cenário de uma ruptura institucional por golpe, por exemplo, por mais que não faça sentido no caso brasileiro, deixou de ser impossível. De acordo com um alto executivo de um dos maiores bancos brasileiros, a possibilidade de Bolsonaro não aceitar passar a faixa para um opositor era avaliada como zero até umas semanas atrás. Hoje é 10%.

Que Bolsonaro gostaria de ser um ditador não se duvida desde o seu surgimento na política, nos anos 80. Mas diversos sinais de alertas foram acesos em 2021.

Há a insistente pregação do presidente contra a legitimidade do processo eleitoral da forma como é realizado hoje no Brasil. Há a incentivo de defensores do governo para a baderna promovida por policiais militares em Pernambuco, Ceará, Paraná, Goiás, Bahia. Há a troca dos comandantes das Forças Armadas e do ministro da Defesa. Há a indisciplina premiada e consentida do general Eduardo Pazuello.

O alto executivo do mercado financeiro menciona apenas uma das duas modalidades de golpe, que é a ditadura aberta, a que implica em não reconhecer o resultado das urnas. A outra, que é a ditadura disfarçada, legitimada pelo voto, presente na Rússia, Turquia, El Salvador, Venezuela, Nicarágua, não foi avaliada.

Como Bolsonaro insiste tanto em dizer que se um adversário ganhar em 2022 é porque terá havido fraude, estende sua desconfiança ao processo eleitoral de outros países, caso que foi o dos Estados Unidos e é o do Peru, convém analisar a primeira hipótese de ruptura.

Segundo este executivo, se estes 10% se materializarem, será um golpe com boa chance de fracasso, porque Bolsonaro tende ao isolamento. A comunidade de negócios, segundo afirma, teme acima de tudo a incerteza. E enxerga mais incerteza na anulação prática do processo eleitoral do que na vitória de um presidente que adote uma política econômica indesejável aos seus propósitos, como poderia ser o caso de Lula. Para ele, uma ditadura aberta de Bolsonaro dura dois ou três meses.

No meio político distante de Bolsonaro, há ansiedade com o rugir das ruas neste mês de junho. Um presidente de um grande partido que se equilibra entre ser governo e oposição observou: “Vamos aguardar o sábado. A postura do presidente poderá acelerar o processo.” O presidente deve participar de uma “motociata” em São Paulo, com direito a comício no Parque Ibirapuera, nas imediações do Comando Militar do Leste. Bolsonaro sonha alto, pretende colocar 100 mil pessoas no ato.

É a primeira manifestação bolsonarista depois da subida de Pazuello ao palanque e dos atos oposicionistas do dia 29. Se o clima não estivesse tão úmido, poderia talvez haver uma queima de máscaras, cuja abolição do uso para já infectados ou vacinados é a nova bandeira do presidente. Mas é evidente que não é o negacionismo que preocupa. Todas as atenções estarão voltadas para a postura do presidente em relação a militares e policiais. “Ninguém está tranquilo”, sentencia este dirigente.

Na semana seguinte, é a vez da manifestação da oposição, da maré engalanada de bandeiras vermelhas contra o presidente. Para Gleisi Hoffmann, presidente do PT, é um antídoto na escalada. “O povo organizado de forma grande e forte é o contraponto que se pode ter”, diz a petista. A petista tomou nota do incidente na última manifestação, quando duas pessoas foram feridas com extrema gravidade pela Polícia Militar de Pernambuco. Teme problemas por este flanco. O Exército não está em toda parte. Os policiais militares sim. Pisa em ovos ao falar sobre a possibilidade de ruptura institucional. Admite que o PT no momento não tem interlocução com a caserna e observa que, em sua opinião, a politização das Forças Armadas não é obra de Bolsonaro, mas começou durante os governos Dilma e Temer, quando o Exército esteve sob o comando do general Villas Bôas.

Para o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, a mãe de todas as batalhas acontecerá no próximo ano. “A campanha do presidente contra o sistema eletrônico de votação atinge o coração da representação democrática. É o guarda-chuva que abriga todos os descaminhos”, diz. Jungmann tem prestígio nas Forças Armadas e diz que elas não embarcariam em uma aventura. Ao se referir ao caso Pazuello, ressalva: “Não tomem a árvore pela floresta.” Cobra atitude do Congresso Nacional. “Falta ao Congresso assumir sua responsabilidade de regulamentar a participação dos militares no governo”, diz.

Este, de fato, é um problema. Outro dirigente de um grande partido que costuma se dividir em relação ao governo Bolsonaro lembra, com certo exagero: “Esse pessoal dos quartéis ficou 40 anos quieto e agora está com 80% dos cargos”.

E aí se chega ao Congresso Nacional dominado por Arthur Lira na Câmara e Rodrigo Pacheco no Senado. Lira é um condestável da Câmara baixa, atropela a tudo e a todos, impõe seus caprichos ao plenário. Não é propriamente aliado de Bolsonaro, é um sócio, consciente do poder que tem.

Ele se oporia a uma escalada autoritária? Na opinião do segundo dirigente citado nesta coluna, sim, porque o aumento do poder de Bolsonaro significaria uma diminuição do seu. Para o presidente nacional do PSB, Carlos Siqueira, há dúvidas. “Não acho que ele articule a favor do autoritarismo, mas também não ajuda a contê-lo”.

A pauta de Lira, percebe-se, é outra. Tenta ocupar o papel que já foi de Rodrigo Maia, o de grande negociador de interesses empresariais para alavancar uma agenda de reformas no Congresso. O seu embate com a equipe econômica para o Legislativo se apropriar do Orçamento foi ilustrativo de seu poder. Bolsonaro se sente à vontade para afrontar o Supremo, mas ninguém o ameaçou este ano como o presidente da Câmara. Vale relembrar a sua declaração do fim de março. “Os remédios políticos do Congresso são conhecidos e são todos amargos, alguns fatais. Muitas vezes são aplicados quando a espiral de erros de avaliação se torna uma escala geométrica incontrolável”. Cabe cobrar de Lira um compromisso com a normalidade institucional.

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