sexta-feira, 11 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Valor Econômico

CPI e inquéritos desvelam ‘buracos negros’ do governo

A CPI e os inquéritos no STF reúnem elementos que podem motivar processos contra o presidente

O governo de Jair Bolsonaro é cheio de buracos negros, que vão sendo descobertos aos poucos. O presidente pratica uma forma diferente de loteamento do Estado. Sem deixar de preencher os cargos burocráticos bem remunerados, com militares de preferência, os indicados nem sempre, em alguns casos quase nunca, têm o poder de fazer aquilo para o qual foram contratados. O ministro da Saúde, por exemplo, se transformou com Eduardo Pazuello em um cargo quase decorativo, em meio a uma pandemia que já matou quase 500 mil brasileiros. Os nomeados para cargos de confiança do governo não exercem funções de confiança, que cabe a redes nem sempre identificáveis de influência.

O “paralelismo” do aparato bolsonarista, ao lado do aparelho de Estado, é uma tática manjada para tentar fugir ou se blindar das responsabilidades legais. A Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, por exemplo, revelou o que já era sabido, a existência de uma penca de palpiteiros, alguns com diploma de médicos, outros não, tendo acesso direto aos ouvidos do presidente e orientando-o na mais grave crise sanitária da história brasileira. O melhor que conseguiram fazer foi sugerir outros fins terapêuticos para a cloroquina, acentuando o fracasso trágico do negacionismo governista.

Muitos desses conselheiros informais foram à CPI para encobrir a responsabilidade do presidente e, se possível, a sua própria. O presidente da República pode ouvir quem quiser para tomar decisões, inclusive em questões de saúde, ainda que seja estranho que os ministros da área, como Luiz Mandetta e Nelson Teich, tenham sido os menos consultados e suas opiniões, as mais desrespeitadas. A CPI, ao alvejar um “gabinete paralelo” tem ao menos um objetivo pedagógico - desvendar as raízes do curandeirismo militante de Bolsonaro. Todos têm direito a expressar as sugestões mais malucas e o presidente pode aceitá-las - como pessoa física. O presidente é obrigado por lei a garantir o direito à vida e não o fez.

É peculiar a exigência de cumprimento das leis da República. Bolsonaro desrespeita aberta e diuturnamente todas as recomendações de prevenção à covid-19 oficiais emitidas pelo Ministério da Saúde. Por que o presidente não é obrigado a usar máscara e respeitar o distanciamento social é um mistério que diz muito não só sobre o espírito anti-republicano de Bolsonaro, mas também sobre o arranjo institucional e sua trama política.

O presidente será responsabilizado pela CPI por deixar os brasileiros sem defesa diante de um vírus letal. As provas estão em toda a parte e continuam surgindo, pelas palavras do presidente. Anteontem, Bolsonaro pôs o kit do “tratamento precoce” em pé de igualdade com as vacinas que, em sua ignorância exuberante, qualificou de “experimentais”. Ele agora deu um passo à frente perigoso: ao lado da turma de seus “ gabinetes”, passou ele mesmo a divulgar fake news. É grave a imputação a um órgão da República, o TCU, de relatório falso no qual grande parte das vítimas da covid-19 não a tiveram como causa mortis.

O gabinete do “ódio”, que já nasceu com a posse de Bolsonaro, é outra aberração na mira da lei. O governo pode fazer propaganda de sua política, por mais tola e lunática que seja. Não pode, porém, se esconder atrás de redes sociais com contas falsas e autores camuflados. A Procuradoria Geral da República pretende arquivar o inquérito sobre atos antidemocráticos porque a Polícia Federal nada teria descoberto de relevante sobre o envolvimento de pessoas com foro privilegiado, conclusão a que chegou cinco meses após receber o relatório da PF, sem abrir investigações adicionais. O fim do sigilo deliberado pelo ministro Alexandre de Moraes mostrou outra coisa, bem diferente.

Vêm de repartições do Planalto, de gabinetes de filhos do presidente e até mesmo da residência de Bolsonaro no Rio, os ataques a reputações e a derrama de fake news contra pessoas e posições de adversários políticos. É facultada a todos a disputa política, respeitada a lei. O problema é que os contribuintes estão pagando bons salários a funcionários do Estado que usam todo seu tempo para outra coisa: espalhar calúnias e discórdia pelo país.

A CPI e os inquéritos no STF reúnem elementos que podem motivar processos contra o presidente. Bolsonaro aposta no aparelhamento das instituições para impedir isso. Seu sucesso depende da correlação de forças políticas, que está além do poder reduzido dos bolsonaristas. Se mudar, o presidente estará em apuros.

O espírito do bolsonarismo

O Estado de S. Paulo

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, disse que “vai chegar uma hora” em que as decisões judiciais não serão cumpridas pelo Executivo.

“O Judiciário vai ter que se acomodar nesse avançar nas prerrogativas do Executivo e do Legislativo. Vai chegar uma hora em que vamos dizer que simplesmente não vamos cumprir mais. Vocês cuidam dos seus que eu cuido do nosso, não dá mais simplesmente para cumprir as decisões porque elas não têm nenhum fundamento, nenhum sentido, nenhum senso prático”, declarou o parlamentar em evento promovido pelo jornal Correio Braziliense e pela Confederação Nacional da Indústria.

A afirmação de Ricardo Barros não é isolada. O próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, já ameaçou não cumprir decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Bem menos polido que seu líder na Câmara, Bolsonaro, em maio do ano passado, declarou, aos gritos, que “ordens absurdas não se cumprem e nós temos que botar um limite nessas questões”. Era uma referência a uma operação da Polícia Federal contra bolsonaristas no âmbito de um inquérito do Supremo sobre a produção de fake news.

Na mesma ocasião, depois que o então ministro do STF Celso de Mello seguiu a praxe e encaminhou à Procuradoria-Geral da República um requerimento de partidos de oposição para que o celular do presidente fosse apreendido, como parte da investigação sobre sua suposta tentativa de interferir politicamente na Polícia Federal, Bolsonaro foi afrontoso: “Me desculpe, senhor ministro Celso de Mello. Retire seu pedido, que meu telefone não será entregue”.

Para completar, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, declarou em nota que o encaminhamento dado pelo ministro Celso de Mello ao caso, cumprindo mera formalidade, constituía “afronta à autoridade máxima do Executivo”, com “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.

Ou seja, o deputado Barros está muito à vontade para dizer, em outras palavras, que cabe ao Executivo escolher as decisões judiciais que cumprirá, em nome da “autoridade” do presidente e da “estabilidade nacional”. O caso que Barros comentou dizia respeito à determinação do Supremo para que o governo realize o Censo Demográfico no ano que vem. O Censo deveria ter sido feito em 2020 e foi sendo postergado em razão da pandemia e de cortes orçamentários. Para o líder do governo, trata-se de decisão judicial sem “nenhum fundamento”, que ademais “avança nas prerrogativas do Executivo”, e isso seria suficiente para torná-la sem efeito.

A declaração do deputado Ricardo Barros, como a do próprio Bolsonaro antes dele, constitui ameaça explícita de desobediência civil. É um padrão bolsonarista. Esse desafio à ordem constitucional, de clara natureza golpista, é parte do processo de deterioração da democracia deflagrado por Bolsonaro desde sua posse. Ao avisarem que não pretendem acatar ordens judiciais, a não ser as que considerem “fundamentadas”, os bolsonaristas expõem com clareza sua estratégia de desmoralizar as instituições da República para submetê-las a seus propósitos liberticidas.

Nesse sentido, as infames ameaças feitas pelo deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do presidente, contra o Supremo, ainda durante a campanha eleitoral, não eram mera bravata, mas um aviso. Recorde-se que o parlamentar disse que, se o Supremo resolvesse impugnar a candidatura do pai, teria que “pagar para ver”. Acrescentou que, “se quiser fechar o STF”, bastariam “um soldado e um cabo”.

É diante desse ânimo antidemocrático que as instituições devem se impor. Fez bem o presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, que reagiu imediatamente às declarações do deputado Ricardo Barros, dizendo que “o respeito a decisões judiciais é pressuposto do Estado Democrático de Direito”. E convém lembrar das palavras do ministro Celso de Mello a propósito das invectivas de Bolsonaro no ano passado: para o decano do Supremo, quem ameaça descumprir decisão judicial, afrontando a Constituição, é “traidor da Constituição” e, como tal, “traidor da Pátria”.

Resgate de alunos

O Estado de S. Paulo

Entre os desafios que o Brasil terá de enfrentar, após a pandemia, está o de recolocar na escola 5,1 milhões de crianças e adolescentes que desistiram de estudar. Por falta de condições financeiras para comprar equipamentos eletrônicos, eles não puderam acompanhar as aulas virtuais enquanto as escolas ficaram fechadas. Isso fez com que o País regredisse duas décadas no acesso ao ensino básico. Esse é o número de crianças e de adolescentes que estavam fora da escola no início da década de 2000.

Essa é uma das conclusões de um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), realizado com base em estatísticas da última Pnad Contínua, concluída em novembro de 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desses 5 milhões de crianças e adolescentes, mais de 40% tinham entre 6 e 10 anos – idade em que a escolarização estava quase universalizada antes da pandemia. 

Em outras palavras, a evasão escolar causada pelo coronavírus acabou atingindo meninos e meninas para quem o acesso às salas de aula já não era mais um problema. Com isso, parte dos recursos aplicados pelo poder público na universalização do ensino fundamental ao longo dos últimos 20 anos acabou sendo desperdiçada, em decorrência do fechamento das escolas por causa da covid-19. 

Segundo a representante do Unicef no Brasil, Florence Bauer, crianças de 6 a 10 anos sem acesso à educação eram exceção no Brasil antes da pandemia. “Essa mudança observada em 2020 pode ter impactos em toda uma geração. São crianças dos anos iniciais do ensino fundamental, fase de alfabetização e outras aprendizagens essenciais às demais etapas escolares. Ciclos de alfabetização incompletos podem acarretar reprovações e abandono escolar”, diz ela, após chamar a atenção para a importância da reabertura das escolas. 

Como as crianças e adolescentes que desistiram dos estudos pertencem a famílias de baixa renda, na prática isso significa que elas se tornarão ainda mais vulneráveis. O estudo revela que a evasão escolar se concentrou mais no Norte (28,4%) e Nordeste (18,3%) do que nas Regiões Sudeste (10,3%), Centro-Oeste (8,5%) e Sul (5,1%). Também mostra que a evasão foi maior entre crianças e adolescentes pretos, pardos e indígenas. Além de deixar de aprender, ao abandonar a escola essas crianças e adolescentes perderam a merenda escolar e ficaram expostos à violência familiar. 

São números alarmantes, o que obriga o poder público, gestores escolares e entidades da área educacional “a ir atrás de cada criança e cada adolescente que está com seu direito à educação negado”, afirma a representante do Unicef no Brasil. O estudo aponta que, para reverter essa exclusão, será necessário garantir acesso à internet para todos, promover campanhas de comunicação comunitária em todos os municípios, mobilizar as escolas e criar condições para que as crianças e adolescentes retomem os estudos. E, para impedir o aprofundamento das desigualdades na formação dos alunos, será preciso desenvolver instrumentos pedagógicos para a recuperação do aprendizado perdido”, afirma Priscila Cruz, presidente executiva do Todos pela Educação, uma ONG que também vem desenvolvendo programas para resgatar alunos que desistiram de estudar. 

Muitas dessas medidas podem ser implementadas pelos municípios e pelos Estados, com apoio técnico de entidades como essas. Mas, para que possam dar os resultados esperados, é preciso que elas sejam articuladas pelo governo federal. É aí, justamente, onde está o problema. Se antes da pandemia o Ministério da Educação já primava pela inépcia, depois dela a pasta se omitiu ainda mais, limitando-se a cuidar de temas menores, mas que interessam por razões eleitorais ao presidente Jair Bolsonaro. 

Ao se negar a ajudar os esforços dos Estados e municípios para reverter o problema da evasão e avançar em direção a um ensino público de qualidade e com equidade, essa omissão é um crime contra as novas gerações.

Tributar a globalização

O Estado de S. Paulo

Acordo do G-7 é um passo para combater a evasão e controlar as multinacionais

Centenas de bilhões de dólares poderão engordar a receita de dezenas de países, incluído o Brasil, se novas, mais eficientes e mais justas formas de tributação das multinacionais forem acordadas, como vem propondo há mais de dez anos a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Erosão fiscal e desvio de lucros podem custar até US$ 240 bilhões anuais em perdas tributárias, segundo estimativa da organização. Um passo para a reforma do sistema foi dado no dia 5 pelos ministros de Finanças do Grupo dos 7 (G-7), formado pelas maiores economias capitalistas (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá).

As multinacionais deverão ser sujeitas a uma tributação básica nos países onde operam, segundo o programa aprovado pelos ministros. Cada governo poderá cobrar pelo menos 15% sobre o lucro obtido no país. A ideia é evitar a cobrança do imposto apenas nos territórios onde as empresas são registradas.

Pelos padrões em vigor, grandes companhias multinacionais conseguem lucrar num território e realizar o acerto de contas fiscais em outros, segundo suas conveniências. Esse problema se agravou com a expansão dos negócios digitais, muito mais difíceis de controlar e de tributar. Novos esquemas de controle poderão mudar esse quadro, reduzindo o poder dos paraísos fiscais. A reforma acordada pelos ministros do G-7 deve ser submetida a ministros e presidentes de bancos centrais do G-20 em reunião prevista para julho.

Mas o acordo aprovado no encontro do G-7, realizado em Londres, envolve mais que o estabelecimento de um novo esquema de tributação de lucros. Inclui também novas formas de controle e de correção dos efeitos climáticos da ação empresarial, além de um compromisso de apoio financeiro a países pobres para vacinação, outras políticas de saúde e programas de recuperação econômica.

“Os efeitos combinados da globalização e da digitalização de nossas economias causaram distorções e iniquidades que só podem ser eficazmente enfrentadas por meio de solução multilateral”, disse o novo secretário-geral da OCDE, Mathias Cormann, ex-ministro de Finanças da Austrália. O acordo no G-7, acrescentou, é um “marco na direção do consenso necessário para a reforma do sistema tributário internacional”.

O caminho para essa reforma vem sendo aberto há anos, por meio de estudos e propostas da OCDE, sob liderança do antecessor de Cormann na chefia da organização, o economista mexicano Angel Gurría. O trabalho começou logo depois da crise financeira internacional de 2008 e tornou-se mais visível a partir de 2019, com a apresentação de propostas para a constituição do novo sistema. Um dos efeitos desse esforço tem sido um controle maior da sonegação, da evasão fiscal e da operação dos paraísos tributários.

Um esquema internacional de tributação básica pode proporcionar a cada país um controle maior dos ganhos de empresas multinacionais – com sede local ou no exterior – e uma distribuição mais equitativa da receita de impostos. O bom uso desse dinheiro dependerá, naturalmente, das condições políticas de cada país, mas pelo menos as condições de geração dessa receita terão melhorado.

O Tesouro brasileiro poderá ganhar nos dois campos, porque o Brasil é uma importante área de operação de multinacionais estrangeiras e, ao mesmo tempo, país de origem de empresas com negócios em outros territórios. Dezenas de empresas brasileiras, segundo dados da OCDE, têm aproveitado paraísos fiscais. Milhões de brasileiros poderiam ser beneficiados se essas companhias fossem tributadas normalmente no País e o dinheiro fosse bem aplicado, sem interferência do Centrão e de ministros gastadores.

A proposta dos ministros do G-7 é um avanço, mas haverá detalhes importantes para discussão no encontro do G-20, em julho. Também será preciso, depois, negociar muitos pontos com outros envolvidos no movimento de reforma. Muito melhor do que combater a globalização é domá-la e criar condições para aproveitar amplamente suas potencialidades.

Por que a alta na inflação preocupa

O Globo

Maio registrou alta de 0,83% na inflação para o consumidor, o maior percentual para o mês desde 1996. O IPCA bateu em 8,06% nos últimos 12 meses, bem acima do teto da meta do Banco Central, de 5,25%. Com a economia ainda cambaleante e cerca de 15 milhões de desempregados, o Brasil vive o fenômeno conhecido como estagflação, termo cunhado nos anos 1960 para definir o quadro que mistura alta nos preços e no desemprego. É uma situação que o país conhece bem e, quando ressurge, causa justificada apreensão.

As previsões das instituições financeiras para a inflação deste ano já haviam subido de 5,06%, no começo de maio, para 5,44% na primeira semana de junho. Depois da divulgação do IPCA, voltaram a aumentar. Quando se fala em inflação, o perigo mora justamente nas expectativas do mercado.

Num país com o histórico do Brasil, o risco de períodos longos de altas nos preços e recuperação medíocre na atividade é ocorrer o que os economistas chamam de “desancoragem” — ou, em bom português, a perda de confiança na autoridade monetária. A inflação só é controlada porque todos entendem que o BC sempre ajustará o juro para manter o índice dentro da meta. Sem essa âncora, as empresas se sentiriam estimuladas a fazer reajustes de preços de forma indiscriminada. Toda a economia continua indexada, pronta para a escalada da espiral inflacionária.

Dois complicadores tornam, desta vez, a situação mais difícil. Primeiro, a pressão inflacionária é global, resultado da recuperação da demanda represada na pandemia (nos Estados Unidos, foi anunciada ontem a maior inflação em 13 anos, 4,7%). Só que, com o dólar alto, não haverá como aliviar a pressão nos preços via importações. O câmbio flutuante deveria permitir isso pela valorização do real, resultante da maior demanda externa por commodities. Não é o que tem acontecido, em virtude das incertezas geradas pelo governo Bolsonaro.

Segundo, a confiança nas contas públicas está em frangalhos, em razão de um conjunto de fatores, como a lambança do Congresso para aprovar o Orçamento e a pressão, decorrente da pandemia, por despesas além do teto de gastos. Em vez de promover reformas para liberar espaço fiscal, Executivo e Legislativo fizeram uma aliança tácita para esquecer o assunto. Para o Executivo, a inflação alta permite mascarar as contas, pois elevará o teto de 2022, além de facilitar a rolagem da dívida pública. O Brasil conhece bem a armadilha: a inflação corrói o poder de compra, sobretudo dos mais pobres, que sofrem mais com o desemprego.

Escapar da estagflação exige o envio de sinais inequívocos ao mercado. O primeiro pode ser dado nas próximas terça-feira e quarta-feira, quando o Copom, órgão do BC que define a taxa básica de juros, se reunirá. Agentes financeiros já estão convencidos de que a inflação deste ano estourará o teto da meta. A dúvida é se o Copom terá pulso para atingir o objetivo em 2022. Com os atuais juros reais negativos, instrumento para agir não falta. Uma mera mudança de tom na ata da reunião poderá melhorar as expectativas.

Noutra frente, o governo tem o dever de demonstrar seu compromisso com o equilíbrio fiscal e a saúde nas contas públicas. Até agora, a administração Bolsonaro repete a trajetória temerária da gestão Dilma Rousseff no rumo da estagflação. É fundamental resgatar a confiança para domar o dragão.

Peru e Estados Unidos expõem os limites de registrar votos em papel

O Globo

O voto impresso se tornou uma obsessão doentia do bolsonarismo. A deputada Bia Kicis (PSL-DF), autora da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que impõe a instalação de impressoras em todas as urnas eletrônicas, afirma que apenas um rastro físico em papel em 100% delas será capaz de garantir a lisura das eleições de 2022. A verdade é que, em 25 anos de urna eletrônica, nunca houve registro de invasão, fraude ou contestação dos resultados. Quanto ao rastro em papel, para onde se olha, o que ele tem garantido é muita confusão.

Considere o Peru. À medida que prosseguia a apuração da eleição de domingo, o resultado apertado suscitava as previsíveis acusações de fraude. A candidata Keiko Fujimori, quando estava menos de meio ponto percentual atrás do candidato Pedro Castillo, estrilou alegando irregularidades e “clara intenção de boicotar a vontade popular”. Não havia, segundo observadores independentes, nenhuma justificativa para falar em fraude em massa.

Mesmo assim, no final da apuração, perto de 0,8% das urnas permaneciam contestadas, o suficiente para virar a eleição para qualquer lado. Antes mesmo de a contagem acabar, Castillo já declarou vitória. Keiko não reconheceu e disse que iria à Justiça. O voto no Peru, é bom lembrar, é manual, e a soma é registrada em boletins manuscritos e assinados. Tudo com rastro físico auditável, como preconizam os críticos da votação eletrônica.

Olhe agora para os Estados Unidos. Seis meses depois da eleição, Donald Trump ainda não aceitou a derrota para Joe Biden. O estado do Arizona está às voltas com uma iniciativa bizarra para recontar votos já certificados e auditados, com vitória inequívoca de Biden. O Senado estadual, de maioria republicana, apoderou-se dos 2 milhões de votos do condado de Maricopa — todos em papel também — e entregou-os a uma empresa da Flórida sem nenhuma experiência em auditoria eleitoral, cujo presidente está convencido das acusações infundadas de fraude.

Mais da metade dos republicanos acredita que a eleição foi roubada, e Trump dissemina a teoria da conspiração segundo a qual assumirá o poder em agosto, quando isso for exposto. Ninguém sabe dizer até onde chegará o desvario.

No Brasil, quem quer conferir o resultado das eleições pode inspecionar o software nas auditorias periódicas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), depois verificar a votação registrada nos boletins de urna. Eles existem tanto em formato digital, no site do TSE, quanto impresso. A instalação de impressoras de voto nas urnas brasileiras poderia até aliviar as angústias dos fetichistas do papel, por criar mais uma forma de auditoria. Mas, na prática, não mudaria o resultado, além de abrir mais uma porta a novas fraudes e contestações.

A insistência no voto impresso é uma óbvia manobra para que Bolsonaro possa contestar resultados desfavoráveis com base em acusações falsas. Os casos americano e peruano mostram que o benefício da impressão seria pífio diante do risco de tumultuar um sistema que funciona bem há décadas.

Rubicão institucional

Folha de S. Paulo

Urge aprovar a PEC que veta nomeação de militares ativos para postos políticos

O perigo potencial que militares representam para a política não é tema novo. Mesmo uma sociedade particularmente militarista como a dos antigos romanos dispunha de regras rígidas para impedir que a força das armas se impusesse na gestão do Estado.

Uma dessas normas vetava a governadores provinciais, que também atuavam como generais, adentrar com tropas na Itália, território que era controlado diretamente por Roma. Tanto generais como soldados que desobedecessem a essa lei estavam automaticamente condenados à morte.

Em janeiro de 49 a.C., Júlio César, que encerrava seu termo como governador da Gália Cisalpina, decidiu atravessar o rio Rubicão, que marcava a fronteira entre a província e a Itália, com a 13ª Legião. Na ocasião, um hesitante César, ciente da gravidade de seu ato, teria proferido a célebre frase “Alea jacta est” (a sorte foi lançada).

Havia sabedoria na norma. A travessia do Rubicão deu lugar a uma violenta guerra civil, uma ditadura e ao fim da República Romana.

Os americanos levaram algo parecido para seu arcabouço normativo. A Lei Posse Comitatus, de 1878, impede o governo federal de usar o Exército dos EUA para fazer cumprir leis dentro do território americano. Federação autêntica, intervenções ali só são possíveis com a concordância do governador e normalmente com tropas da Guarda Nacional e não do Exército.

No Brasil, cuja República teve início com um golpe castrense e onde os generais cometeram uma série de intervenções, não chegamos a desenvolver uma legislação efetiva para afastar os militares da política. É hora de mudar isso.

Urge, assim, que o Congresso aprove a proposta de emenda constitucional que barra a nomeação de membros ativos das Forças Armadas para cargos de governo.

As Forças constituem uma instituição de Estado —servem ao país, não a governos. A distinção é importante tanto para preservar os militares de eventuais insucessos da administração como para assegurar que nenhum governante fará uso indevido do poder armado.

Jair Bolsonaro vem trabalhando para esmaecer essa saudável separação, convidando milhares de fardados, da ativa e da reserva, para integrar sua gestão. São postos dos mais diversos escalões, além de posições em estatais.

Não há muito o que objetar quando o nomeado já passou para a reserva, mas não se pode aceitar que se estabeleçam relações promíscuas com militares em atividade.

A aprovação da PEC ajudará a pôr um fim a esse mau hábito. Não parece haver razão, porém, para vincular essa discussão à criação de uma quarentena eleitoral para membros do Poder Judiciário, como já se cogita fazer. Esse é outro tema relevante e que merece debate, mas trata-se questões completamente autônomas.

O urgente agora é criar um Rubicão para proteger as instituições.

Quiproquó identitário

Folha de S. Paulo

Declaração preconceituosa de presidente argentino dá munição para Bolsonaro

A elaboração de mitos identitários, criados para explicar a origem de determinado povo, aparece como traço do processo de formação histórica de inúmeras nações.

No Brasil, por exemplo, forjou-se a ideia das três raças, expressão que traduz uma espécie de congraçamento de índios, africanos e europeus num único povo miscigenado, o que pode escamotear a violência secular contra negros escravizados e a quase dizimação das populações originárias.

A Argentina não foge à regra, como a lamentável declaração do presidente do país, Alberto Fernández, voltou a evidenciar.

Recebendo em Buenos Aires o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, o mandatário disparou, durante uma entrevista coletiva na quarta-feira (9): “Os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros, da selva, e nós, os argentinos, chegamos em barcos. Eram barcos que vinham da Europa”.

Para além de seu evidente caráter preconceituoso, a afirmação veicula também a imagem, fabricada no século 19, da Argentina como uma nação de origem estritamente europeia, destituída de raízes indígenas ou africanas.

Diante da repercussão negativa, Fernández, que erroneamente atribuiu a frase ao escritor mexicano Octavio Paz, ainda tentou se desculpar, mas o quiproquó continental já estava criado.

Antagonista ideológico do argentino e frequentemente criticado por declarações preconceituosas e xenófobas, Jair Bolsonaro não deixaria de aproveitar a oportunidade de desforra fácil. Publicou foto sua ao lado de indígenas com a legenda “Selva!” —expressão de cumprimento no Exército.

Nesta quinta (10), voltou à carga, associando Fernández ao ditador da Venezuela, Nicolás Maduro.

Ao presidente brasileiro, que teve a popularidade derrubada pela gestão ruinosa da pandemia, convém alardear as agruras de seus congêneres à esquerda na América do Sul. Embora distante da catástrofe humanitária venezuelana, a Argentina padece de crônica desordem econômica, com graves impactos sociais e políticos.

Bolsonaro se vale da dificuldade de seus maiores adversários domésticos em se distanciar de erros e desastres de tais governos.

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