EDITORIAIS
Valor Econômico
CPI e inquéritos desvelam ‘buracos negros’
do governo
A CPI e os inquéritos no STF reúnem
elementos que podem motivar processos contra o presidente
O governo de Jair Bolsonaro é cheio de
buracos negros, que vão sendo descobertos aos poucos. O presidente pratica uma
forma diferente de loteamento do Estado. Sem deixar de preencher os cargos
burocráticos bem remunerados, com militares de preferência, os indicados nem
sempre, em alguns casos quase nunca, têm o poder de fazer aquilo para o qual
foram contratados. O ministro da Saúde, por exemplo, se transformou com Eduardo
Pazuello em um cargo quase decorativo, em meio a uma pandemia que já matou
quase 500 mil brasileiros. Os nomeados para cargos de confiança do governo não
exercem funções de confiança, que cabe a redes nem sempre identificáveis de
influência.
O “paralelismo” do aparato bolsonarista, ao
lado do aparelho de Estado, é uma tática manjada para tentar fugir ou se
blindar das responsabilidades legais. A Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid,
por exemplo, revelou o que já era sabido, a existência de uma penca de
palpiteiros, alguns com diploma de médicos, outros não, tendo acesso direto aos
ouvidos do presidente e orientando-o na mais grave crise sanitária da história
brasileira. O melhor que conseguiram fazer foi sugerir outros fins terapêuticos
para a cloroquina, acentuando o fracasso trágico do negacionismo governista.
Muitos desses conselheiros informais foram à CPI para encobrir a responsabilidade do presidente e, se possível, a sua própria. O presidente da República pode ouvir quem quiser para tomar decisões, inclusive em questões de saúde, ainda que seja estranho que os ministros da área, como Luiz Mandetta e Nelson Teich, tenham sido os menos consultados e suas opiniões, as mais desrespeitadas. A CPI, ao alvejar um “gabinete paralelo” tem ao menos um objetivo pedagógico - desvendar as raízes do curandeirismo militante de Bolsonaro. Todos têm direito a expressar as sugestões mais malucas e o presidente pode aceitá-las - como pessoa física. O presidente é obrigado por lei a garantir o direito à vida e não o fez.
É peculiar a exigência de cumprimento das
leis da República. Bolsonaro desrespeita aberta e diuturnamente todas as
recomendações de prevenção à covid-19 oficiais emitidas pelo Ministério da
Saúde. Por que o presidente não é obrigado a usar máscara e respeitar o
distanciamento social é um mistério que diz muito não só sobre o espírito
anti-republicano de Bolsonaro, mas também sobre o arranjo institucional e sua
trama política.
O presidente será responsabilizado pela CPI
por deixar os brasileiros sem defesa diante de um vírus letal. As provas estão
em toda a parte e continuam surgindo, pelas palavras do presidente. Anteontem,
Bolsonaro pôs o kit do “tratamento precoce” em pé de igualdade com as vacinas
que, em sua ignorância exuberante, qualificou de “experimentais”. Ele agora deu
um passo à frente perigoso: ao lado da turma de seus “ gabinetes”, passou ele
mesmo a divulgar fake news. É grave a imputação a um órgão da República, o TCU,
de relatório falso no qual grande parte das vítimas da covid-19 não a tiveram
como causa mortis.
O gabinete do “ódio”, que já nasceu com a
posse de Bolsonaro, é outra aberração na mira da lei. O governo pode fazer
propaganda de sua política, por mais tola e lunática que seja. Não pode, porém,
se esconder atrás de redes sociais com contas falsas e autores camuflados. A
Procuradoria Geral da República pretende arquivar o inquérito sobre atos
antidemocráticos porque a Polícia Federal nada teria descoberto de relevante
sobre o envolvimento de pessoas com foro privilegiado, conclusão a que chegou
cinco meses após receber o relatório da PF, sem abrir investigações adicionais.
O fim do sigilo deliberado pelo ministro Alexandre de Moraes mostrou outra
coisa, bem diferente.
Vêm de repartições do Planalto, de
gabinetes de filhos do presidente e até mesmo da residência de Bolsonaro no
Rio, os ataques a reputações e a derrama de fake news contra pessoas e posições
de adversários políticos. É facultada a todos a disputa política, respeitada a
lei. O problema é que os contribuintes estão pagando bons salários a
funcionários do Estado que usam todo seu tempo para outra coisa: espalhar
calúnias e discórdia pelo país.
A CPI e os inquéritos no STF reúnem
elementos que podem motivar processos contra o presidente. Bolsonaro aposta no
aparelhamento das instituições para impedir isso. Seu sucesso depende da
correlação de forças políticas, que está além do poder reduzido dos
bolsonaristas. Se mudar, o presidente estará em apuros.
O espírito do bolsonarismo
O Estado de S. Paulo
O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, disse que “vai chegar uma hora” em que as decisões judiciais não serão cumpridas pelo Executivo.
“O Judiciário vai ter que se acomodar nesse
avançar nas prerrogativas do Executivo e do Legislativo. Vai chegar uma hora em
que vamos dizer que simplesmente não vamos cumprir mais. Vocês cuidam dos seus
que eu cuido do nosso, não dá mais simplesmente para cumprir as decisões porque
elas não têm nenhum fundamento, nenhum sentido, nenhum senso prático”, declarou
o parlamentar em evento promovido pelo jornal Correio Braziliense e pela
Confederação Nacional da Indústria.
A afirmação de Ricardo Barros não é
isolada. O próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, já ameaçou não
cumprir decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Bem menos polido que seu
líder na Câmara, Bolsonaro, em maio do ano passado, declarou, aos gritos, que
“ordens absurdas não se cumprem e nós temos que botar um limite nessas
questões”. Era uma referência a uma operação da Polícia Federal contra
bolsonaristas no âmbito de um inquérito do Supremo sobre a produção de fake
news.
Na mesma ocasião, depois que o então
ministro do STF Celso de Mello seguiu a praxe e encaminhou à Procuradoria-Geral
da República um requerimento de partidos de oposição para que o celular do
presidente fosse apreendido, como parte da investigação sobre sua suposta
tentativa de interferir politicamente na Polícia Federal, Bolsonaro foi
afrontoso: “Me desculpe, senhor ministro Celso de Mello. Retire seu pedido, que
meu telefone não será entregue”.
Para completar, o ministro do Gabinete de
Segurança Institucional, Augusto Heleno, declarou em nota que o encaminhamento
dado pelo ministro Celso de Mello ao caso, cumprindo mera formalidade,
constituía “afronta à autoridade máxima do Executivo”, com “consequências
imprevisíveis para a estabilidade nacional”.
Ou seja, o deputado Barros está muito à
vontade para dizer, em outras palavras, que cabe ao Executivo escolher as
decisões judiciais que cumprirá, em nome da “autoridade” do presidente e da
“estabilidade nacional”. O caso que Barros comentou dizia respeito à
determinação do Supremo para que o governo realize o Censo Demográfico no ano
que vem. O Censo deveria ter sido feito em 2020 e foi sendo postergado em razão
da pandemia e de cortes orçamentários. Para o líder do governo, trata-se de
decisão judicial sem “nenhum fundamento”, que ademais “avança nas prerrogativas
do Executivo”, e isso seria suficiente para torná-la sem efeito.
A declaração do deputado Ricardo Barros,
como a do próprio Bolsonaro antes dele, constitui ameaça explícita de
desobediência civil. É um padrão bolsonarista. Esse desafio à ordem
constitucional, de clara natureza golpista, é parte do processo de deterioração
da democracia deflagrado por Bolsonaro desde sua posse. Ao avisarem que não
pretendem acatar ordens judiciais, a não ser as que considerem “fundamentadas”,
os bolsonaristas expõem com clareza sua estratégia de desmoralizar as
instituições da República para submetê-las a seus propósitos liberticidas.
Nesse sentido, as infames ameaças feitas
pelo deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do presidente, contra o Supremo,
ainda durante a campanha eleitoral, não eram mera bravata, mas um aviso.
Recorde-se que o parlamentar disse que, se o Supremo resolvesse impugnar a
candidatura do pai, teria que “pagar para ver”. Acrescentou que, “se quiser
fechar o STF”, bastariam “um soldado e um cabo”.
É diante desse ânimo antidemocrático que as
instituições devem se impor. Fez bem o presidente do Supremo, ministro Luiz
Fux, que reagiu imediatamente às declarações do deputado Ricardo Barros,
dizendo que “o respeito a decisões judiciais é pressuposto do Estado
Democrático de Direito”. E convém lembrar das palavras do ministro Celso de
Mello a propósito das invectivas de Bolsonaro no ano passado: para o decano do
Supremo, quem ameaça descumprir decisão judicial, afrontando a Constituição, é
“traidor da Constituição” e, como tal, “traidor da Pátria”.
Resgate de alunos
O Estado de S. Paulo
Entre os desafios que o Brasil terá de enfrentar, após a pandemia, está o de recolocar na escola 5,1 milhões de crianças e adolescentes que desistiram de estudar. Por falta de condições financeiras para comprar equipamentos eletrônicos, eles não puderam acompanhar as aulas virtuais enquanto as escolas ficaram fechadas. Isso fez com que o País regredisse duas décadas no acesso ao ensino básico. Esse é o número de crianças e de adolescentes que estavam fora da escola no início da década de 2000.
Essa é uma das conclusões de um estudo do
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em parceria com o Centro de
Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), realizado
com base em estatísticas da última Pnad Contínua, concluída em novembro de 2020
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desses 5 milhões de
crianças e adolescentes, mais de 40% tinham entre 6 e 10 anos – idade em que a
escolarização estava quase universalizada antes da pandemia.
Em outras palavras, a evasão escolar
causada pelo coronavírus acabou atingindo meninos e meninas para quem o acesso
às salas de aula já não era mais um problema. Com isso, parte dos recursos
aplicados pelo poder público na universalização do ensino fundamental ao longo
dos últimos 20 anos acabou sendo desperdiçada, em decorrência do fechamento das
escolas por causa da covid-19.
Segundo a representante do Unicef no
Brasil, Florence Bauer, crianças de 6 a 10 anos sem acesso à educação eram
exceção no Brasil antes da pandemia. “Essa mudança observada em 2020 pode ter
impactos em toda uma geração. São crianças dos anos iniciais do ensino
fundamental, fase de alfabetização e outras aprendizagens essenciais às demais
etapas escolares. Ciclos de alfabetização incompletos podem acarretar
reprovações e abandono escolar”, diz ela, após chamar a atenção para a
importância da reabertura das escolas.
Como as crianças e adolescentes que
desistiram dos estudos pertencem a famílias de baixa renda, na prática isso
significa que elas se tornarão ainda mais vulneráveis. O estudo revela que a
evasão escolar se concentrou mais no Norte (28,4%) e Nordeste (18,3%) do que
nas Regiões Sudeste (10,3%), Centro-Oeste (8,5%) e Sul (5,1%). Também mostra
que a evasão foi maior entre crianças e adolescentes pretos, pardos e
indígenas. Além de deixar de aprender, ao abandonar a escola essas crianças e
adolescentes perderam a merenda escolar e ficaram expostos à violência
familiar.
São números alarmantes, o que obriga o
poder público, gestores escolares e entidades da área educacional “a ir atrás
de cada criança e cada adolescente que está com seu direito à educação negado”,
afirma a representante do Unicef no Brasil. O estudo aponta que, para reverter
essa exclusão, será necessário garantir acesso à internet para todos, promover
campanhas de comunicação comunitária em todos os municípios, mobilizar as
escolas e criar condições para que as crianças e adolescentes retomem os
estudos. E, para impedir o aprofundamento das desigualdades na formação dos
alunos, será preciso desenvolver instrumentos pedagógicos para a recuperação do
aprendizado perdido”, afirma Priscila Cruz, presidente executiva do Todos pela
Educação, uma ONG que também vem desenvolvendo programas para resgatar alunos
que desistiram de estudar.
Muitas dessas medidas podem ser
implementadas pelos municípios e pelos Estados, com apoio técnico de entidades
como essas. Mas, para que possam dar os resultados esperados, é preciso que
elas sejam articuladas pelo governo federal. É aí, justamente, onde está o problema.
Se antes da pandemia o Ministério da Educação já primava pela inépcia, depois
dela a pasta se omitiu ainda mais, limitando-se a cuidar de temas menores, mas
que interessam por razões eleitorais ao presidente Jair Bolsonaro.
Ao se negar a ajudar os esforços dos
Estados e municípios para reverter o problema da evasão e avançar em direção a
um ensino público de qualidade e com equidade, essa omissão é um crime contra
as novas gerações.
Tributar a globalização
O Estado de S. Paulo
Acordo do G-7 é um passo para combater a
evasão e controlar as multinacionais
Centenas de bilhões de dólares poderão engordar a receita de dezenas de países, incluído o Brasil, se novas, mais eficientes e mais justas formas de tributação das multinacionais forem acordadas, como vem propondo há mais de dez anos a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Erosão fiscal e desvio de lucros podem custar até US$ 240 bilhões anuais em perdas tributárias, segundo estimativa da organização. Um passo para a reforma do sistema foi dado no dia 5 pelos ministros de Finanças do Grupo dos 7 (G-7), formado pelas maiores economias capitalistas (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá).
As multinacionais deverão ser sujeitas a
uma tributação básica nos países onde operam, segundo o programa aprovado pelos
ministros. Cada governo poderá cobrar pelo menos 15% sobre o lucro obtido no
país. A ideia é evitar a cobrança do imposto apenas nos territórios onde as
empresas são registradas.
Pelos padrões em vigor, grandes companhias
multinacionais conseguem lucrar num território e realizar o acerto de contas
fiscais em outros, segundo suas conveniências. Esse problema se agravou com a
expansão dos negócios digitais, muito mais difíceis de controlar e de tributar.
Novos esquemas de controle poderão mudar esse quadro, reduzindo o poder dos
paraísos fiscais. A reforma acordada pelos ministros do G-7 deve ser submetida
a ministros e presidentes de bancos centrais do G-20 em reunião prevista para
julho.
Mas o acordo aprovado no encontro do G-7,
realizado em Londres, envolve mais que o estabelecimento de um novo esquema de
tributação de lucros. Inclui também novas formas de controle e de correção dos
efeitos climáticos da ação empresarial, além de um compromisso de apoio
financeiro a países pobres para vacinação, outras políticas de saúde e
programas de recuperação econômica.
“Os efeitos combinados da globalização e da
digitalização de nossas economias causaram distorções e iniquidades que só
podem ser eficazmente enfrentadas por meio de solução multilateral”, disse o
novo secretário-geral da OCDE, Mathias Cormann, ex-ministro de Finanças da
Austrália. O acordo no G-7, acrescentou, é um “marco na direção do consenso
necessário para a reforma do sistema tributário internacional”.
O caminho para essa reforma vem sendo
aberto há anos, por meio de estudos e propostas da OCDE, sob liderança do
antecessor de Cormann na chefia da organização, o economista mexicano Angel
Gurría. O trabalho começou logo depois da crise financeira internacional de
2008 e tornou-se mais visível a partir de 2019, com a apresentação de propostas
para a constituição do novo sistema. Um dos efeitos desse esforço tem sido um
controle maior da sonegação, da evasão fiscal e da operação dos paraísos tributários.
Um esquema internacional de tributação
básica pode proporcionar a cada país um controle maior dos ganhos de empresas
multinacionais – com sede local ou no exterior – e uma distribuição mais
equitativa da receita de impostos. O bom uso desse dinheiro dependerá,
naturalmente, das condições políticas de cada país, mas pelo menos as condições
de geração dessa receita terão melhorado.
O Tesouro brasileiro poderá ganhar nos dois
campos, porque o Brasil é uma importante área de operação de multinacionais
estrangeiras e, ao mesmo tempo, país de origem de empresas com negócios em
outros territórios. Dezenas de empresas brasileiras, segundo dados da OCDE, têm
aproveitado paraísos fiscais. Milhões de brasileiros poderiam ser beneficiados
se essas companhias fossem tributadas normalmente no País e o dinheiro fosse
bem aplicado, sem interferência do Centrão e de ministros gastadores.
A proposta dos ministros do G-7 é um
avanço, mas haverá detalhes importantes para discussão no encontro do G-20, em
julho. Também será preciso, depois, negociar muitos pontos com outros
envolvidos no movimento de reforma. Muito melhor do que combater a globalização
é domá-la e criar condições para aproveitar amplamente suas potencialidades.
Por que a alta na inflação preocupa
O Globo
Maio registrou alta de 0,83% na inflação para o consumidor, o maior percentual para o mês desde 1996. O IPCA bateu em 8,06% nos últimos 12 meses, bem acima do teto da meta do Banco Central, de 5,25%. Com a economia ainda cambaleante e cerca de 15 milhões de desempregados, o Brasil vive o fenômeno conhecido como estagflação, termo cunhado nos anos 1960 para definir o quadro que mistura alta nos preços e no desemprego. É uma situação que o país conhece bem e, quando ressurge, causa justificada apreensão.
As previsões das instituições financeiras
para a inflação deste ano já haviam subido de 5,06%, no começo de maio, para
5,44% na primeira semana de junho. Depois da divulgação do IPCA, voltaram a
aumentar. Quando se fala em inflação, o perigo mora justamente nas expectativas
do mercado.
Num país com o histórico do Brasil, o risco
de períodos longos de altas nos preços e recuperação medíocre na atividade é
ocorrer o que os economistas chamam de “desancoragem” — ou, em bom português, a
perda de confiança na autoridade monetária. A inflação só é controlada porque
todos entendem que o BC sempre ajustará o juro para manter o índice dentro da
meta. Sem essa âncora, as empresas se sentiriam estimuladas a fazer reajustes
de preços de forma indiscriminada. Toda a economia continua indexada, pronta
para a escalada da espiral inflacionária.
Dois complicadores tornam, desta vez, a
situação mais difícil. Primeiro, a pressão inflacionária é global, resultado da
recuperação da demanda represada na pandemia (nos Estados Unidos, foi anunciada
ontem a maior inflação em 13 anos, 4,7%). Só que, com o dólar alto, não haverá
como aliviar a pressão nos preços via importações. O câmbio flutuante deveria
permitir isso pela valorização do real, resultante da maior demanda externa por
commodities. Não é o que tem acontecido, em virtude das incertezas geradas pelo
governo Bolsonaro.
Segundo, a confiança nas contas públicas
está em frangalhos, em razão de um conjunto de fatores, como a lambança do
Congresso para aprovar o Orçamento e a pressão, decorrente da pandemia, por
despesas além do teto de gastos. Em vez de promover reformas para liberar
espaço fiscal, Executivo e Legislativo fizeram uma aliança tácita para esquecer
o assunto. Para o Executivo, a inflação alta permite mascarar as contas, pois
elevará o teto de 2022, além de facilitar a rolagem da dívida pública. O Brasil
conhece bem a armadilha: a inflação corrói o poder de compra, sobretudo dos
mais pobres, que sofrem mais com o desemprego.
Escapar da estagflação exige o envio de
sinais inequívocos ao mercado. O primeiro pode ser dado nas próximas
terça-feira e quarta-feira, quando o Copom, órgão do BC que define a taxa
básica de juros, se reunirá. Agentes financeiros já estão convencidos de que a
inflação deste ano estourará o teto da meta. A dúvida é se o Copom terá pulso
para atingir o objetivo em 2022. Com os atuais juros reais negativos,
instrumento para agir não falta. Uma mera mudança de tom na ata da reunião
poderá melhorar as expectativas.
Noutra frente, o governo tem o dever de demonstrar
seu compromisso com o equilíbrio fiscal e a saúde nas contas públicas. Até
agora, a administração Bolsonaro repete a trajetória temerária da gestão Dilma
Rousseff no rumo da estagflação. É fundamental resgatar a confiança para domar
o dragão.
Peru e Estados Unidos expõem os limites de
registrar votos em papel
O Globo
O voto impresso se tornou uma obsessão doentia do bolsonarismo. A deputada Bia Kicis (PSL-DF), autora da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que impõe a instalação de impressoras em todas as urnas eletrônicas, afirma que apenas um rastro físico em papel em 100% delas será capaz de garantir a lisura das eleições de 2022. A verdade é que, em 25 anos de urna eletrônica, nunca houve registro de invasão, fraude ou contestação dos resultados. Quanto ao rastro em papel, para onde se olha, o que ele tem garantido é muita confusão.
Considere o Peru. À medida que prosseguia a
apuração da eleição de domingo, o resultado apertado suscitava as previsíveis
acusações de fraude. A candidata Keiko Fujimori, quando estava menos de meio
ponto percentual atrás do candidato Pedro Castillo, estrilou alegando irregularidades
e “clara intenção de boicotar a vontade popular”. Não havia, segundo
observadores independentes, nenhuma justificativa para falar em fraude em
massa.
Mesmo assim, no final da apuração, perto de
0,8% das urnas permaneciam contestadas, o suficiente para virar a eleição para
qualquer lado. Antes mesmo de a contagem acabar, Castillo já declarou vitória.
Keiko não reconheceu e disse que iria à Justiça. O voto no Peru, é bom lembrar,
é manual, e a soma é registrada em boletins manuscritos e assinados. Tudo com
rastro físico auditável, como preconizam os críticos da votação eletrônica.
Olhe agora para os Estados Unidos. Seis
meses depois da eleição, Donald Trump ainda não aceitou a derrota para Joe
Biden. O estado do Arizona está às voltas com uma iniciativa bizarra para
recontar votos já certificados e auditados, com vitória inequívoca de Biden. O
Senado estadual, de maioria republicana, apoderou-se dos 2 milhões de votos do
condado de Maricopa — todos em papel também — e entregou-os a uma empresa da Flórida
sem nenhuma experiência em auditoria eleitoral, cujo presidente está convencido
das acusações infundadas de fraude.
Mais da metade dos republicanos acredita
que a eleição foi roubada, e Trump dissemina a teoria da conspiração segundo a
qual assumirá o poder em agosto, quando isso for exposto. Ninguém sabe dizer
até onde chegará o desvario.
No Brasil, quem quer conferir o resultado
das eleições pode inspecionar o software nas auditorias periódicas do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), depois verificar a votação registrada nos boletins de
urna. Eles existem tanto em formato digital, no site do TSE, quanto impresso. A
instalação de impressoras de voto nas urnas brasileiras poderia até aliviar as
angústias dos fetichistas do papel, por criar mais uma forma de auditoria. Mas,
na prática, não mudaria o resultado, além de abrir mais uma porta a novas
fraudes e contestações.
A insistência no voto impresso é uma óbvia
manobra para que Bolsonaro possa contestar resultados desfavoráveis com base em
acusações falsas. Os casos americano e peruano mostram que o benefício da
impressão seria pífio diante do risco de tumultuar um sistema que funciona bem
há décadas.
Rubicão institucional
Folha de S. Paulo
Urge aprovar a PEC que veta nomeação de
militares ativos para postos políticos
O perigo potencial que militares
representam para a política não é tema novo. Mesmo uma sociedade
particularmente militarista como a dos antigos romanos dispunha de regras
rígidas para impedir que a força das armas se impusesse na gestão do Estado.
Uma dessas normas vetava a governadores
provinciais, que também atuavam como generais, adentrar com tropas na Itália,
território que era controlado diretamente por Roma. Tanto generais como
soldados que desobedecessem a essa lei estavam automaticamente condenados à
morte.
Em janeiro de 49 a.C., Júlio César, que
encerrava seu termo como governador da Gália Cisalpina, decidiu atravessar o
rio Rubicão, que marcava a fronteira entre a província e a Itália, com a 13ª
Legião. Na ocasião, um hesitante César, ciente da gravidade de seu ato, teria
proferido a célebre frase “Alea jacta est” (a sorte foi lançada).
Havia sabedoria na norma. A travessia do
Rubicão deu lugar a uma violenta guerra civil, uma ditadura e ao fim da
República Romana.
Os americanos levaram algo parecido para
seu arcabouço normativo. A Lei Posse Comitatus, de 1878, impede o governo
federal de usar o Exército dos EUA para fazer cumprir leis dentro do território
americano. Federação autêntica, intervenções ali só são possíveis com a
concordância do governador e normalmente com tropas da Guarda Nacional e não do
Exército.
No Brasil, cuja República teve início com
um golpe castrense e onde os generais cometeram uma série de intervenções, não
chegamos a desenvolver uma legislação efetiva para afastar os militares da
política. É hora de mudar isso.
Urge, assim, que o Congresso aprove a proposta
de emenda constitucional que barra a nomeação de membros ativos das Forças
Armadas para cargos de governo.
As Forças constituem uma instituição de
Estado —servem ao país, não a governos. A distinção é importante tanto para
preservar os militares de eventuais insucessos da administração como para
assegurar que nenhum governante fará uso indevido do poder armado.
Jair Bolsonaro vem trabalhando para
esmaecer essa saudável separação, convidando milhares de fardados, da ativa e
da reserva, para integrar sua gestão. São postos dos mais diversos escalões,
além de posições em estatais.
Não há muito o que objetar quando o nomeado
já passou para a reserva, mas não se pode aceitar que se estabeleçam relações
promíscuas com militares em atividade.
A aprovação da PEC ajudará a pôr um fim a
esse mau hábito. Não parece haver razão, porém, para vincular essa discussão à
criação de uma quarentena eleitoral para membros do Poder Judiciário, como já
se cogita fazer. Esse é outro tema relevante e que merece debate, mas trata-se
questões completamente autônomas.
O urgente agora é criar um Rubicão para
proteger as instituições.
Quiproquó identitário
Folha de S. Paulo
Declaração preconceituosa de presidente
argentino dá munição para Bolsonaro
A elaboração de mitos identitários, criados
para explicar a origem de determinado povo, aparece como traço do processo de
formação histórica de inúmeras nações.
No Brasil, por exemplo, forjou-se a ideia
das três raças, expressão que traduz uma espécie de congraçamento de índios,
africanos e europeus num único povo miscigenado, o que pode escamotear a
violência secular contra negros escravizados e a quase dizimação das populações
originárias.
A Argentina não foge à regra, como a lamentável
declaração do presidente do país, Alberto Fernández, voltou a
evidenciar.
Recebendo em Buenos Aires o
primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, o mandatário disparou, durante uma
entrevista coletiva na quarta-feira (9): “Os mexicanos vieram dos indígenas, os
brasileiros, da selva, e nós, os argentinos, chegamos em barcos. Eram barcos
que vinham da Europa”.
Para além de seu evidente caráter
preconceituoso, a afirmação veicula também a imagem, fabricada no século 19, da
Argentina como uma nação de origem estritamente europeia, destituída de raízes
indígenas ou africanas.
Diante da repercussão negativa, Fernández,
que erroneamente atribuiu a frase ao escritor mexicano Octavio Paz, ainda
tentou se desculpar, mas o quiproquó continental já estava criado.
Antagonista ideológico do argentino e
frequentemente criticado por declarações preconceituosas e xenófobas, Jair
Bolsonaro não deixaria de aproveitar a oportunidade de desforra fácil. Publicou
foto sua ao lado de indígenas com a legenda “Selva!” —expressão de cumprimento
no Exército.
Nesta quinta (10), voltou à carga,
associando Fernández ao ditador da Venezuela, Nicolás Maduro.
Ao presidente brasileiro, que teve a
popularidade derrubada pela gestão ruinosa da pandemia, convém alardear as
agruras de seus congêneres à esquerda na América do Sul. Embora distante da
catástrofe humanitária venezuelana, a Argentina padece de crônica desordem
econômica, com graves impactos sociais e políticos.
Bolsonaro se vale da dificuldade de seus maiores adversários domésticos em se distanciar de erros e desastres de tais governos.
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