- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Presidente busca reeleição mantendo clima
populista-golpista para caso de revés nas urnas
Bolsonaro traçou dois planos para seu
futuro político, ambos vinculados à permanência no poder. O primeiro é a aposta
na reeleição, com toda uma estratégia para manter sua base mais fiel - próxima
de 15% do eleitorado - e ampliar no mínimo mais dez pontos percentuais para
garantir uma vaga no segundo turno. Mas o medo em relação à eleição - sobretudo
depois da anulação do julgamento do ex-presidente Lula - e a visão autoritária
que tem da política levaram o presidente a construir um plano B: é preciso
criar um clima populista-golpista no país, seja para mobilizar permanentemente
o bolsonarismo-raiz, seja para acuar os adversários, ou então, ainda, como
última saída, para inviabilizar a vitória de outro candidato, mantendo-se no
Palácio do Planalto a qualquer custo.
Pode parecer uma contradição apostar numa
via democrática e, ao mesmo tempo, deixar a porta aberta para um possível
golpe. Na verdade, o bolsonarismo se sustenta nesta ambiguidade, porque a
pressão constante contra o sistema político tem permitido reduzir
paulatinamente vários dos controles sobre o presidente e garantido, ademais,
uma base fiel capaz de tudo em nome da liderança máxima, chamada de “mito”.
É claro que essa estratégia também contém seus riscos e gerou perdas políticas ao longo do caminho, mas ela é a que se casa mais com o “mindset” de Jair Bolsonaro: ele sempre concorreu a eleições, mas não gosta de ser controlado e quer ter o poder máximo; prefere as guerras culturais em vez da labuta árdua das políticas públicas; e gosta muito mais de fazer a política para a multidão que o obedece do que junto aos outros políticos eleitos. O presidente abraçou um modelo populista que coloca “o povo contra o sistema”. Desse modo, esse perfil ambíguo em relação à democracia é não só um valor pessoal. Trata-se de uma identidade política que lhe garante, estrategicamente, um lugar competitivo na disputa por eleitores.
O plano A, vinculado às eleições, é o preferido,
porque garante uma legitimidade maior para quem pretende expandir o próprio
poder e reduzir as dissensões e controles. Bolsonaro quer ser reconhecido como
o que detém o apoio da maioria, podendo jogar isso contra os adversários, que
seriam as minorias, para as quais, na versão bolsonarista da política, só resta
a obediência.
O projeto de reeleição conta com alguns
importantes trunfos. O primeiro é que o ciclo econômico tem chances de melhorar
daqui até a eleição, graças principalmente ao cenário internacional. A demanda
pelos produtos agrícolas e minerais está em alta porque a China passará por um
período de recuperação de um patamar mais alto de expansão econômica. Além
disso, a economia americana deve puxar boa parte do mundo e o Brasil também se beneficiará
disso. O paradoxo é que a recuperação dos dois países tem muito a ver com a
maior eficácia no combate à pandemia, algo que não é verdadeiro para o caso
brasileiro. É como se o mundo nos premiasse quando cometemos muitos erros.
O segundo trunfo é tentar turbinar um novo
programa social que substituiria o Bolsa Família. Bolsonaro aprendeu muito com
os efeitos do auxílio emergencial, que no ano passado foi o principal
responsável pelo seu aumento de popularidade. O erro de não prolongar por mais
tempo essa transferência de renda custou caro ao presidente, do mesmo modo que
o valor deste ano, muito mais baixo, não está sendo suficiente para recuperar
os patamares de apoio. Além disso, a volta de Lula é o maior pesadelo para o
bolsonarismo, e é preciso competir pelos votos que o líder petista tem nas
classes D e E.
Bolsonaro também sabe que a próxima eleição
não será igual à de 2018, quando ele pôde simplesmente aparecer como um
outsider contra a “velha política” e centrar sua campanha nas redes sociais.
Quando o incumbente concorre à reeleição, ele é o tema principal do pleito e
não dá mais para se colocar como o elemento novo do jogo. Logo, no cenário da
disputa presidencial de 2022 será preciso ter algumas armas do sistema político,
especialmente o apoio de certas lideranças locais e, mais ainda, de um horário
eleitoral gratuito maior.
Para conseguir esse tempo de TV e rádio, o
presidente fez um pacto com o Centrão em torno da multiplicação de pequenas
obras pelo país afora, por meio do clientelismo. Esse é o terceiro trunfo de
Bolsonaro, que pretende usá-lo para ter o apoio de dois ou três partidos médios
a sua candidatura, embora deseje concorrer por uma legenda pequena de modo a
ter o controle familiar sobre sua campanha.
A força eleitoral completa-se com o apoio
dos bolsonaristas-raiz e de parcela dos evangélicos, por meio da guerra
cultural e moral contra os adversários, pintados como comunistas contrários à
família e à religião. A votação desse grupo não garante a ida ao segundo turno,
porém, se o plano A falhar, serão esses eleitores que poderão apoiar Bolsonaro
em seu plano B, juntamente com o apoio de forças militares e civis que atuariam
como milicianos do governante, em estilo bem parecido com o que aconteceu no
chavismo e entre aqueles que apoiaram o golpe na Bolívia em 2019.
O plano B precisa existir porque a
estratégia eleitoral projetada por Bolsonaro não é líquida e certa. Muito pelo
contrário: há várias incertezas e pedras no caminho até 2022. A primeira grande
dificuldade está em transformar a melhoria econômica em bem-estar dos
eleitores, tanto os de classe média quanto os mais pobres. Houve perda de renda
com a inflação, perda de emprego, perda de parentes e amigos com a pandemia,
perda de esperança na possibilidade de ter uma vida que já foi melhor no
passado recente.
O tamanho da melhoria econômica é, ademais,
uma incógnita. Especialmente porque há incertezas em relação ao combate à
pandemia e à garantia de energia elétrica. Afora isso, a política ambiental
atual afeta o fluxo de investimentos. Um crescimento de 2% a 2,5% é bom em
relação aos últimos cinco anos, mas não é um Plano Real nem chega perto do auge
do lulismo.
A criação de um novo programa de
transferência de renda não significará pagar o mesmo valor do auxílio
emergencial. E os eleitores que receberam essa ajuda “polpuda” em 2020 serão
lembrados disso pelos outros candidatos durante a eleição. Cria-se, assim, um
obstáculo para que Bolsonaro transforme essa ação governamental em apoio
eleitoral incondicional.
O mais complicado é que na região com mais
beneficiários do Bolsa Família, o Nordeste, há lideranças políticas muito
fortes contra o bolsonarismo. São governadores de Estados de partidos
diferentes, lideranças regionais que estão no Senado, além de três fortes
presidenciáveis: Tasso Jereissati, Ciro Gomes e, sobretudo, Lula, considerado
por lá como o “pai dos pobres”. Se todos eles falarem contra o presidente, um
muro antibolsonarista pode ser erguido nesses nove Estados.
O estilo de governar de Bolsonaro gera
votos numa parcela da população, mas igualmente tem levado à perda definitiva
de um conjunto muito grande de eleitores. O presidente é cada vez mais
rejeitado pelas classes médias do Sul e do Sudeste, como também por boa parte
dos mais pobres das regiões metropolitanas do país, em lugares onde movimentos
sociais estão crescendo frente ao aumento da vulnerabilidade social. Para estes
dois públicos, há um forte desgaste em relação ao fracasso na pandemia -
evidenciado semanalmente pela CPI -, à destruição do meio ambiente, ao descaso
com a educação e a cultura, às manobras escusas para salvar a família
presidencial de investigações, bem como um certo cansaço do populismo agressivo
e personalista do presidente.
No balanço dos fatores favoráveis e
desfavoráveis, Bolsonaro é um candidato competitivo, mas que muito dificilmente
terá o mesmo contingente de votos de 2018. Isso significa, na hipótese
positiva, uma vitória em segundo turno muito apertada, similar ao cenário de
2014, quando Dilma venceu Aécio por um triz. O resultado disso foi muito
descontentamento social e um governo fragilizado. Já a hipótese negativa é a
derrota, que pode ser numa eleição acirrada ou por uma vantagem mais larga,
caso o governo erre muito em questões sensíveis ao Nordeste, às classes médias
urbanas e aos mais pobres das periferias metropolitanas.
Diante destes cenários eleitorais, o plano
B é a forma pela qual Bolsonaro combina seus valores autoritários com sua
estratégia política. Afinal, ele pode ganhar por pouco ou não ganhar, por isso
deslegitimar adversários, a mídia e as instituições constitui um modo de
emparedar parte da classe política (e dos eleitores), deixando no ar a
possibilidade de mobilizar seu séquito para garantir que o poder fique com quem
de fato “representa o povo”. Pode ser um blefe ou, se necessário, uma tentativa
de golpe. Assim, um clima golpista permanente e crescente até as eleições
presidenciais é o elo que junta os dois planos políticos bolsonaristas - o
eleitoral e o da quebra da democracia.
Não é possível agora prever o desfecho
desta estratégia. O que se sabe é que os próximos 18 meses serão os mais tensos
em termos políticos desde o fim da ditadura militar. E Bolsonaro criará várias
provocações diversionistas no meio do caminho, como discutir o voto impresso ou
a Copa América, para que o clima populista-golpista seja reinante no país,
garantindo a reeleição ou evitando que outro assuma o poder em 2023.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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