- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A desobediência e a indisciplina, pelo
visto, se transformaram em profissão
Somos um povo imprevidente que tem
consciência de sua imprevidência e até gosta dela. Não surpreende, portanto,
que tenhamos governos igualmente imprevidentes, que expressam aquilo que
culturalmente somos.
Monteiro Lobato definiu o perfil do
brasileiro imprevidente na figura do Jeca Tatu. Dá muito trabalho cuidar do
amanhã que ainda não chegou. Não vale a pena, dizia o Jeca. Cansa antes de
trabalhar. Compreende-se.
Esta sociedade tem suas raízes nas escravidões,
a indígena e a africana. O escravo era coisa, e coisas não têm esperança. Quem
não tem esperança não pode ser previdente. O amanhã não é dele, mas de quem
nele manda. Ser previdente depende de ser pessoa e pessoa livre.
Nosso conformismo com o dia de hoje, nossa
cumplicidade com quem manda ou quem pensa por nós, quem de nós usurpa o direito
de pensar nosso destino, é herança da escravidão. Inscrita em nossa consciência
social e política com o chicote do feitor que sobrevive na mentalidade de muita
gente neste país.
Uma das historinhas populares mais contadas
entre nós é a da cigarra cantora e a formiga trabalhadeira. Uma variante
pós-moderna da história faz da cigarra uma heroína da noite, rica, cantora de
boate, bem de vida, casaco de vison nos invernos frios da Europa.
Enquanto isso, a pobre formiga continuava
penando à cata das folhas de que nascerá no formigueiro o fungo que vai
alimentá-la durante o inverno.
Ao descobrir essa inversão dos valores,
numa conversa com a formiga que a visitou, pediu-lhe que, quando fosse a Paris,
procurasse o autor da fábula, um tal de La Fontaine, e o mandasse para aquele
lugar. A moral da história era enganosa, “fake news”.
O sonho dos brasileiros já foi o de ser a formiga honrada e incansável. Hoje, parece muito mais o da cigarra da vida boa e alegre, sem preocupações com o amanhã, sem pagar por ele o preço do trabalho duro e constante de hoje. Passamos da sociedade do trabalho para a sociedade de consumo e ostentação. Aliás, não adianta chorar sobre o leite derramado. É a vida.
Na própria cena política há uma incômoda
figuração dessa inversão. Alguém que chegou administrativamente a capitão manda
hoje em pessoas que fizeram a carreira completa e chegaram a general.
Quem transgride no governo transgressor
recebe o galardão do apreço e do aplauso. A desobediência e a indisciplina,
pelo visto, se transformaram em profissão. Quem transgride recebe a medalha, e
quem segue as normas recebe a desculpa esfarrapada. Vitória da cigarra contra a
formiga. O hoje sem amanhã venceu.
Nos dias atuais, o nosso amanhã sem a
prudência e a previdência de um hoje responsável está profundamente
comprometido. Penso na educação descontinuada e superficial desta hora adversa.
Toda uma geração de crianças e de adolescentes tem seu futuro roubado.
Não só pela gravidade da pandemia em si e
das mal administradas medidas preventivas necessárias para conter sua
disseminação. Mas também pela omissão e pela incompetência em criar
alternativas científicas e consistentes para preencher criativamente a enorme
mutilação do processo educacional. E a carência de uma nova e urgente educação
que retome e reforce nossa tradicional concepção de aliança entre ciência e
humanismo na formação das novas gerações.
Em nome de uma opção preferencial pela
civilização e em oposição ao materialismo que mercantiliza tudo: a vida, a
dignidade, a responsabilidade, a nossa identidade e mesmo a fé.
A disseminação de religiões mercenárias
instaladas nas próprias antecâmaras do poder, as do interesse do autoritarismo
político, a disseminação de uma religiosidade conformista, em que a omissão de
hoje fará o milagre da prosperidade pessoal amanhã.
Hoje, tecnicamente, seria muito mais fácil
encontrar soluções eficazes para os problemas sociais que vivemos. No entanto,
o olhar dominante e hegemônico do Brasil de hoje está voltado para um futuro
que, na imaginação simplória dos que mandam na riqueza e no poder, é uma volta
ao PIB de antes da pandemia. Ainda nestes dias gente do poder andou celebrando
índices que parecem indicar que estamos no caminho do retorno.
O Brasil é um país de índices econômicos
sem conteúdo social. Celebramos índices da bolsa de valores, mas não somos
capazes de dizer de maneira científica e objetiva de que modo tais índices
resolverão o gravíssimo problema da fome, da miséria, da habitação tosca e
imprópria, da sociabilidade promíscua, da exclusão social, da urbanização
patológica. O que nos faz um país economicamente rico e socialmente pobre.
A recusa da busca de um futuro
economicamente próspero e socialmente justo é a reacionária opção preferencial
pela miséria da maioria como fonte da abundância indecente da minoria.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar
Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia
Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de
Fábrica" (Ateliê).
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