O Globo
Na mitologia grega, a Quimera era um dos
descendentes dos monstros Tifão e Equidna. A criatura híbrida é geralmente
descrita como um leão de cujas costas projetava-se a cabeça de uma cabra, com
uma serpente no lugar da cauda. Já temos a nossa Quimera, na forma da MP da
privatização da Eletrobras, a filha medonha da união entre os liberais do
governo e os patrimonialistas do Congresso.
A MP inaugura um novo fenômeno, que deve
ser descrito como privatização soviética.
— Não vamos chorar muito pela Eletrobras —conclamou
o sempre feliz Paulo Guedes, que se acostumou a secar suas lágrimas num lenço
estampado com a efígie de Bolsonaro.
—Reformas nunca são perfeitas — concluiu,
celebrando a primeira privatização de um governo que nasceu prometendo vender
“cerca de R$ 1 trilhão em ativos”, incluindo “as ações do Tesouro na
Petrobras”, a Telebras, os Correios, o Serpro, a Dataprev, a CBTU e os
principais portos do Sudeste.
Perfeição? A MP incrustada com os proverbiais jabutis estabelece uma coleção de investimentos compulsórios dignos de um Plano Quinquenal da antiga URSS. Leonid Brejnev, o gerente da decadência da “pátria do socialismo”, experimenta uma segunda vida no corpo do ministro da Economia.
Não são detalhes. A MP estabelece cotas de
geração elétrica em usinas movidas a combustíveis fósseis e a implantação de
gasodutos destinados a servi-las. Os investimentos compulsórios previstos
contrariam tanto a lógica econômica quanto a ambiental. Seu produto aparente
será um incremento estrutural do custo da energia para os consumidores. O
produto oculto será uma alteração, para pior, na matriz energética.
Os congressistas operaram na moldura do
patrimonialismo, criando reservas de mercado para diversos grupos de pressão.
Mas, em aliança com o governo, acataram o conceito original de antecipação de
receita para a União, não por acaso às vésperas da corrida eleitoral. O custo
da antecipação será pago por todos os brasileiros, no ato da quitação das
contas de energia.
Na antiga URSS, o mercado havia sido
abolido — e, com ele, as sinalizações de preços que orientam a alocação
eficiente de capital. Os investimentos eram ditados exclusivamente pela
política, pela vontade suprema do Partido-Estado. O país tornou-se o maior
produtor mundial de cimento e aço, mas sua população carecia dos mais
corriqueiros bens de consumo. A economia funcionava como um motor de difusão de
ineficiências sistêmicas e destruição permanente de riqueza. A privatização da
Eletrobras segue modelo similar: Leonid Guedes.
Os governos Lula e Dilma patrocinaram o
capitalismo de Estado, insuflando os investimentos de empresas estatais em
torno das quais orbitavam “campeões nacionais” como a Odebrecht, a Vale e o
império espectral de Eike Batista. O fruto do experimento foi a falência
técnica da Petrobras e da Eletrobras. A petrolífera foi devastada por
investimentos desastrosos, pela gestão política dos preços dos combustíveis e
pela rede de dutos da corrupção. A estatal de eletricidade, já em crise, foi
arruinada pela MP 579, de 2012, que reduziu preços da energia por meio da
corrosão do capital da empresa.
Na hora do impeachment, a opinião pública
havia aprendido a lição fundamental sobre o impacto devastador do populismo no
patrimônio público — e voltava a aceitar a ideia de desestatização. A
privatização soviética da Eletrobras muda o cenário, e Leonid Guedes engata a
quinta marcha na campanha eleitoral de Lula. “Privatizar a Eletrobras é
entregar de bandeja esse inestimável patrimônio duramente construído pelo povo
brasileiro”, cantou o ex-presidente, antecipando o efeito político do aumento
das contas de energia e de suas implicações inflacionárias.
“Quando a esquerda se nega a fazer a reforma adequada no tempo certo, a direita acaba fazendo a reforma inadequada no tempo errado”, sentenciou Nelson Barbosa. O ex-ministro da Fazenda de Dilma está equivocado. O certo é: as reformas inadequadas da direita patrimonialista conduzem ao poder uma esquerda populista avessa a reformas, tanto as inadequadas quanto as adequadas.
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