segunda-feira, 28 de junho de 2021

Demétrio Magnoli - Leonid Guedes

O Globo

Na mitologia grega, a Quimera era um dos descendentes dos monstros Tifão e Equidna. A criatura híbrida é geralmente descrita como um leão de cujas costas projetava-se a cabeça de uma cabra, com uma serpente no lugar da cauda. Já temos a nossa Quimera, na forma da MP da privatização da Eletrobras, a filha medonha da união entre os liberais do governo e os patrimonialistas do Congresso.

A MP inaugura um novo fenômeno, que deve ser descrito como privatização soviética.

— Não vamos chorar muito pela Eletrobras —conclamou o sempre feliz Paulo Guedes, que se acostumou a secar suas lágrimas num lenço estampado com a efígie de Bolsonaro.

—Reformas nunca são perfeitas — concluiu, celebrando a primeira privatização de um governo que nasceu prometendo vender “cerca de R$ 1 trilhão em ativos”, incluindo “as ações do Tesouro na Petrobras”, a Telebras, os Correios, o Serpro, a Dataprev, a CBTU e os principais portos do Sudeste.

Perfeição? A MP incrustada com os proverbiais jabutis estabelece uma coleção de investimentos compulsórios dignos de um Plano Quinquenal da antiga URSS. Leonid Brejnev, o gerente da decadência da “pátria do socialismo”, experimenta uma segunda vida no corpo do ministro da Economia.

Não são detalhes. A MP estabelece cotas de geração elétrica em usinas movidas a combustíveis fósseis e a implantação de gasodutos destinados a servi-las. Os investimentos compulsórios previstos contrariam tanto a lógica econômica quanto a ambiental. Seu produto aparente será um incremento estrutural do custo da energia para os consumidores. O produto oculto será uma alteração, para pior, na matriz energética.

Os congressistas operaram na moldura do patrimonialismo, criando reservas de mercado para diversos grupos de pressão. Mas, em aliança com o governo, acataram o conceito original de antecipação de receita para a União, não por acaso às vésperas da corrida eleitoral. O custo da antecipação será pago por todos os brasileiros, no ato da quitação das contas de energia.

Na antiga URSS, o mercado havia sido abolido — e, com ele, as sinalizações de preços que orientam a alocação eficiente de capital. Os investimentos eram ditados exclusivamente pela política, pela vontade suprema do Partido-Estado. O país tornou-se o maior produtor mundial de cimento e aço, mas sua população carecia dos mais corriqueiros bens de consumo. A economia funcionava como um motor de difusão de ineficiências sistêmicas e destruição permanente de riqueza. A privatização da Eletrobras segue modelo similar: Leonid Guedes.

Os governos Lula e Dilma patrocinaram o capitalismo de Estado, insuflando os investimentos de empresas estatais em torno das quais orbitavam “campeões nacionais” como a Odebrecht, a Vale e o império espectral de Eike Batista. O fruto do experimento foi a falência técnica da Petrobras e da Eletrobras. A petrolífera foi devastada por investimentos desastrosos, pela gestão política dos preços dos combustíveis e pela rede de dutos da corrupção. A estatal de eletricidade, já em crise, foi arruinada pela MP 579, de 2012, que reduziu preços da energia por meio da corrosão do capital da empresa.

Na hora do impeachment, a opinião pública havia aprendido a lição fundamental sobre o impacto devastador do populismo no patrimônio público — e voltava a aceitar a ideia de desestatização. A privatização soviética da Eletrobras muda o cenário, e Leonid Guedes engata a quinta marcha na campanha eleitoral de Lula. “Privatizar a Eletrobras é entregar de bandeja esse inestimável patrimônio duramente construído pelo povo brasileiro”, cantou o ex-presidente, antecipando o efeito político do aumento das contas de energia e de suas implicações inflacionárias.

“Quando a esquerda se nega a fazer a reforma adequada no tempo certo, a direita acaba fazendo a reforma inadequada no tempo errado”, sentenciou Nelson Barbosa. O ex-ministro da Fazenda de Dilma está equivocado. O certo é: as reformas inadequadas da direita patrimonialista conduzem ao poder uma esquerda populista avessa a reformas, tanto as inadequadas quanto as adequadas.

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