segunda-feira, 28 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

O tapetão e a rua

Folha de S. Paulo

Bolsonaro repete expediente de governantes cujo mandato se encontra sob ameaça

Jair Bolsonaro se vale do jargão futebolístico ao equiparar a CPI da Covid a um “tapetão” —os tribunais esportivos que tomam as decisões fora do campo de jogo, de má fama entre os torcedores.

A palavra foi repetida no sábado (26), durante mais um mal disfarçado ato de campanha eleitoral com aglomeração de motociclistas, desta vez em Chapecó (SC). “No tapetão, não vão levar”, bradou.

À sua maneira tosca, Bolsonaro segue o surrado roteiro de governantes cujo mandato se encontra ameaçado por movimentos dos demais Poderes. Invoca apoios reais ou potenciais no eleitorado e diz-se alvo de um conchavo de raposas políticas contra a vontade popular manifestada nas urnas.

O expediente tem lá seu apelo —e é fato que o Congresso e até o Judiciário colocam na balança os danos de agir contra um presidente que disponha de considerável sustentação na opinião pública. Trata-se, no entanto, de uma demonstração de fraqueza, não de força.

A sustentação parlamentar de Bolsonaro, provida pelo centrão, é interesseira e volátil acima do padrão das tradicionalmente fragmentadas coalizões do país. Tampouco são estanques os humores das ruas, como o presidente terá percebido a esta altura.

O desgaste provocado pela trágica gestão da pandemia derrubou a popularidade do mandatário ao menor patamar desde a posse, além de contribuir para levar o arquirrival Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à liderança das pesquisas para a disputa do Planalto.

Ainda estão por serem conhecidos os desdobramentos do caso Covaxin no Congresso e nas preferências do eleitorado. Fato é que o governo ainda não apresentou uma defesa articulada ante as suspeitas de corrupção na compra da vacina e prevaricação do presidente.

Enquanto seus ministros fazem rosnados desconexos, Bolsonaro não desce do palanque —proporcionando momentos deploráveis como incentivar uma criança a tirar a máscara em Jucurutu (RN).

Parece contar que a complexidade das investigações e dos entendimentos parlamentares esvazie as ofensivas da CPI e dos defensores do impeachment, enquanto a recuperação da economia e o avanço da vacinação jogam a seu favor.

Entretanto esse também é um caminho acidentado. Apesar da melhora dos indicadores e do ambiente internacional favorável, não tardará para que a política econômica do próximo governo entre decisivamente em pauta.

Os fatores de incerteza vão desde os temores de que Bolsonaro escancare ainda mais os cofres públicos para o centrão até declarações de Lula contra o teto de gastos, acentuando o risco de embate entre populismos econômicos.

Turbulências financeiras prejudicam, de imediato, o governante de turno. Se duradouras, suas consequências voltam-se contra o país.

Fora de lugar

Folha de S. Paulo

Bandeira bolsonarista, ensino domiciliar não faz sentido como pauta prioritária

O setor educacional no Brasil, em particular na rede pública, já padecia de sérias deficiências antes da Covid-19; após 15 meses de pandemia e caos no calendário escolar, recuperar o atraso pedagógico de uma geração inteira deveria ter primazia absoluta. O bolsonarismo, porém, parece mais preocupado com o ensino domiciliar.

Projeto de lei destinado a regulamentar o direito de pais que desejam educar os filhos em casa —o chamado “homeschooling”, termo importado da agenda conservadora dos EUA— consta da lista de prioridades legislativas do Palácio do Planalto e pode ser votado em breve na Câmara dos Deputados.

A ideia já coleciona avanços regionais. No Distrito Federal, é objeto de lei sancionada no final do ano passado. Neste junho, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou texto sobre o tema, com apoio de políticos liberais.

Seus defensores dizem que se batem por um direito individual —o de decidir como educar os filhos. Por sedutor que possa parecer o argumento, é com a formação adequada das crianças e dos adolescentes que a política pública precisa se preocupar.

Mesmo que a lei venha a impor condições como obrigação de seguir o currículo nacional, escolaridade mínima dos pais e avaliações dos alunos, a opção de privar meninos e meninas do ambiente escolar não deixará de ser problemática.

Nas piores hipóteses, a motivação dos pais poderá ser a de impedir que se conheçam outras visões da realidade, aprisionando os filhos nos limites de doutrinas que não dão margem a opiniões diferentes.

Mesmo que não seja esse o caso, há consenso entre pedagogos sobre o papel crucial da interação com colegas e professores no desenvolvimento social e emocional dos estudantes —precisamente aquilo de que o distanciamento forçado pela Covid hoje os priva.

Em tese, podem-se imaginar situações em que os pais se vejam compelidos a tomar as rédeas da educação dos filhos, em sentido estrito. Idealmente, isso seria feito em complemento ao ensino formal, não em substituição a ele.

Trata-se, de todo modo, de regulamentar como proceder em casos que devem ser excepcionais. Há temas muito mais urgentes a demandar a atenção de legisladores, autoridades e gestores da educação.

O País que queremos ser

O Estado de S. Paulo

O Brasil estará condenado a um longo período de mediocridade caso o próximo governo não seja capaz de oferecer melhores perspectivas de vida para os 47,8 milhões de jovens na faixa entre 15 e 29 anos. O mais recente Atlas das Juventudes, realizado pelas redes de organizações Em Movimento e Pacto das Juventudes pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em parceria com a FGV Social, revela que quase a metade deste contingente populacional (47%) sairia do Brasil hoje caso tivesse oportunidade. É muito grave que tantos jovens não enxerguem seu futuro atrelado ao do País. Mais ainda, que não se sintam motivados a tomar parte da construção deste destino.

O desalento de segmento tão expressivo da juventude brasileira é ainda mais preocupante porque o País vive agora o chamado “bônus demográfico”: nunca a população entre 15 e 29 anos foi tão grande em nossa história. A tendência é que, daqui em diante, esta faixa populacional fique cada vez menor. As gerações em plena efervescência criativa e produtiva são o dínamo capaz de levar qualquer país do mundo aonde sua sociedade queira chegar.

Portanto, é muito triste constatar que muitos milhões desses jovens brasileiros sintam como se o país em que nasceram lhes tenha virado as costas. “Não há melhor previsor do futuro do País que o universo dos jovens de hoje”, bem lembraram os pesquisadores da FGV Social, a propósito da publicação da pesquisa Jovens: Projeções Populacionais, Percepções e Políticas Públicas, há poucos dias (ver editorial Retrato da juventude brasileira, publicado em 12/6/2021).

A tempestade perfeita gerada pela confluência das crises econômica e sanitária foi particularmente cruel para a população mais jovem. Do total de jovens entre 15 e 29 anos, nada menos do que 70% afirmam ter dificuldade para encontrar trabalho. O porcentual de “nem-nem”, ou seja, de jovens que nem estudam nem trabalham, nunca foi tão alto: 27,1% dos quase 50 milhões naquela faixa etária, de acordo com o Atlas das Juventudes. Os jovens também foram os que mais perderam renda na pandemia – 11%, de 25 a 29 anos; 17%, de 20 a 24 anos; e 26%, de 15 a 19 anos. Também é o contingente que apresenta a maior involução do índice de Gini, que mede a desigualdade – aumento de 3,8% da desigualdade entre jovens, ante 2,7% do conjunto da população até 2019.

O quadro que se apresenta é o de um país incapaz de instilar esperança. Os jovens brasileiros são os que menos acreditam na progressão de vida por meio do trabalho (70%) na América Latina. Nos vizinhos Argentina e Uruguai, o grau de confiança é de 85% e 84%, respectivamente. Na Bolívia, 91%. Na Colômbia, 89%. No Chile, 87%.

O Atlas das Juventudes também afere a percepção dos jovens sobre a maneira como o presidente da República governa. No período compreendido entre 2011 e 2014, a aprovação foi de 60,6% (57,5% no mundo). Já no período entre 2015 e 2019, a aprovação do governo entre a juventude despencou para 12,1%, enquanto se manteve estável, em média, nos outros países (57,4%). Resta absolutamente claro, portanto, que uma das principais missões do próximo presidente da República será resgatar a confiança dos jovens brasileiros no País. E isto só será possível por meio de políticas públicas responsáveis e muito bem elaboradas e implementadas, especialmente na área econômica, com vistas ao aumento da geração de emprego e renda, e, não menos importante, na área de educação, especialmente afetada pela pandemia e chave para a qualificação desses jovens e para o desenvolvimento do País.

O impacto do descaso do governo Jair Bolsonaro pela educação pode ser sentido até mesmo pelos jovens mais qualificados, que não veem condições de permanecer no Brasil (ver editorial Fuga de cérebros, publicado em 9/6/2021).

“As juventudes têm potencial para protagonizar agendas globais e locais de desenvolvimento social, mas, para isso, precisam do apoio de governos e de outros parceiros”, diz trecho do Atlas das Juventudes. Descuidar deste apoio é um crime contra o futuro do Brasil.

 Lula e as sentenças criminais

O Estado de S. Paulo

Juntamente com outros quatro réus, Luiz Inácio Lula da Silva foi absolvido da acusação de corrupção envolvendo a aprovação da Medida Provisória (MP) 471/2009, que prorrogou incentivos fiscais de montadoras instaladas nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Segundo a denúncia de 2017, o PT teria recebido R$ 6 milhões de uma empresa próxima a montadoras.

O juiz Frederico Botelho de Barros Viana, da 10.ª Vara Federal de Brasília, considerou que a acusação não demonstrou “de maneira convincente” a forma pela qual o ex-presidente petista teria participado no “contexto supostamente criminoso”.

Como noutras vezes, a decisão judicial foi depois distorcida, como se dissesse mais do que de fato diz. Segundo a defesa de Lula, “a sentença (...) reforça que o ex-presidente foi vítima de uma série de acusações infundadas e com motivação política”.

A sentença é clara. O caso se refere apenas à MP 471/09 e o juiz da 10.ª Vara Federal de Brasília absolveu os réus por entender que não havia prova suficiente para a condenação. Nos autos, não há nada a indicar que Luiz Inácio Lula da Silva foi perseguido indevidamente pela Justiça. Na sentença, o magistrado reconheceu expressamente que, ao longo de todo o processo, os princípios do contraditório e da ampla defesa foram respeitados.

Vale lembrar que, neste caso, o próprio Ministério Público Federal (MPF) pediu, nas alegações finais, a absolvição dos acusados. “A denúncia foi devidamente acompanhada de prova da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria. Mas a longa instrução processual, que foi submetida a todos os ditames do devido processo legal, não evidencia a participação de Gilberto Carvalho e Luiz Inácio Lula da Silva no ajuste espúrio supostamente conduzido por Mauro Marcondes”, disse o MPF, pleiteando a aplicação do princípio in dubio pro reo: na ausência de provas suficientes para condenar, que se decida em favor dos acusados.

Não há como alegar perseguição política contra o ex-presidente petista quando até o órgão acusador, o Ministério Público, pediu sua absolvição. Poucos réus na Justiça desfrutam desse cuidado.

A respeito das ações penais contra Luiz Inácio Lula da Silva, outro ponto merece atenção. Em razão de algumas decisões judiciais, neste momento, o líder petista não se enquadra nas hipóteses de inelegibilidade previstas na Lei da Ficha Limpa. Ou seja, na atual situação dos processos criminais contra Luiz Inácio Lula da Silva, a legislação aprovada com o objetivo de tirar das eleições pessoas condenadas por corrupção e outros graves crimes não o impede de se candidatar.

Tal situação jurídica não é, no entanto, sinônimo de atestado de probidade ou de conduta irreprochável na vida pública. São realidades muito diversas. Uma coisa é a Justiça reconhecer que não houve provas suficientes do crime de corrupção na edição e tramitação da MP 471/09. Outra coisa é pretender que decisões judiciais apaguem o rastro de corrupção, incompetência e negacionismo que Luiz Inácio Lula da Silva e o PT deixaram na vida nacional.

Regulamentado o que a Constituição prevê, a Lei da Ficha Limpa fixou um patamar mínimo de moralidade nas eleições. Por exemplo, pessoa condenada em segunda instância por crime contra a administração pública não pode se candidatar. Mas não basta, por óbvio, escapar das hipóteses de inelegibilidade para ser considerado íntegro ou merecedor da confiança do eleitor.

O sistema de Justiça Penal deve fazer a sua parte, investigando os crimes e, dentro do mais estrito respeito ao devido processo legal, punindo os culpados. No caso de não haver provas suficientes, o caminho é a absolvição. Ao mesmo tempo, o sistema da Lei da Ficha Limpa não exime o eleitor de avaliar a integridade concreta de cada candidato.

A responsabilidade política também é feita de memória. Não há sentença judicial, não há aflição do tempo presente – como a que impõe Jair Bolsonaro ao País – capazes de apagar o que foram os governos petistas, especialmente em termos de moralidade pública.

 

Clima, biodiversidade e desenvolvimento

O Estado de S. Paulo

Nos círculos científicos e políticos há uma conscientização crescente de que duas das questões mais prementes do chamado Antropoceno, as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade, estão interconectadas. Na prática, contudo, os dois desafios continuam a ser em boa medida enfrentados separadamente. O risco é de que um passo adiante numa direção implique dois passos atrás em outra.

Pela primeira vez as duas principais organizações dedicadas a esses temas – o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas e a Plataforma Intergovernamental de Ciência e Políticas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPCC e IPBES, nas siglas em inglês) – se reuniram para apresentar uma avaliação conjugada. O relatório mostra que é possível solucionar as duas crises juntas – ou aprofundar ambas.

Exemplos de sinergia incluem ações para proteger a biodiversidade que simultaneamente contribuem para a mitigação das mudanças climáticas, ou para ações voltadas para incrementar a adaptabilidade de espécies e ecossistemas a essas mudanças. Por outro lado, pode haver desequilíbrios. O uso de terras e do oceano para absorver gases de efeito estufa, por exemplo, resulta na perda de biodiversidade ou de outros benefícios naturais dos ecossistemas afetados.

O relatório identifica diversas ações focadas na mitigação climática deletéria para a biodiversidade, como as grandes monoculturas voltadas para a bioenergia; o reflorestamento com árvores exóticas ao ecossistema local; ou algumas energias renováveis (como as baseadas em baterias) que desencadeiam surtos de mineração não sustentável.

Muitas estratégias passam pela adoção de “Soluções baseadas na Natureza”. Uma abordagem integrada para as terras utilizadas para bioenergia, por exemplo, seria incluir plantações e pastagens ao redor de painéis solares, gerando, a um tempo, comida e energia limpa e benefícios aos polinizadores e outras espécies selvagens. Baterias alternativas e sistemas eficientes de reciclagem dos recursos minerais também precisam ser considerados.

Por definição, as “Soluções baseadas na Natureza” são simultaneamente benéficas ao meio ambiente e ao bem-estar humano. Mas o relatório adverte que a extensão de seu efeito para a mitigação climática ainda é incerta, e que elas são mais eficazes quando planejadas a longo prazo e não estreitamente focadas na rápida captura de carbono. Em outras palavras, reduções ambiciosas das emissões de gases de efeito estufa ainda são indispensáveis.

Entre as soluções mais óbvias, simples e baratas para beneficiar tanto as mudanças climáticas quanto a biodiversidade estão o freio à degradação e a restauração de ecossistemas ricos em carbono e em espécies – como a Amazônia e a Mata Atlântica. Estes sistemas têm capacidade para absorver 60% das emissões causadas pelo ser humano, com muitos outros benefícios, como regulação das chuvas, proteção costeira, mais qualidade da água, menos erosão do solo e a polinização.

O Fórum Econômico Mundial estima que o investimento na natureza pode gerar até 395 milhões de empregos até 2030. Segundo o Fundo Monetário Internacional, cada US$ 1 empregado no combate às mudanças climáticas e à perda de biodiversidade pode gerar US$ 7 de retorno.

A pandemia expôs dramaticamente a interconexão entre o ser humano e o meio ambiente e ofereceu uma oportunidade única de requalificá-la. É literalmente vital que os pacotes de recuperação levem em conta a necessidade de, por um lado, desestimular subsídios prejudiciais à biodiversidade e, por outro, estimular práticas agrícolas e hábitos de consumo sustentáveis.

“Solucionar alguns dos mais fortes e aparentemente inevitáveis desequilíbrios entre o clima e a biodiversidade conduzirá a uma mudança coletiva e profunda de valores”, concluiu Hans-Otto Pörtner, coautor do relatório, “tal como superar a concepção do progresso econômico baseado exclusivamente no crescimento do PIB, para uma que equilibre o desenvolvimento humano com valores múltiplos da natureza em prol de uma boa qualidade de vida, sem transgredir os limites biofísicos e sociais.”

A boa onda do ESG deve ser aperfeiçoada

O Globo

O Google Trends, ferramenta que mostra os termos mais pesquisados no buscador do Google, exibe de forma incontestável a recente escalada da sigla em inglês ESG, ou ASG em português — Ambiental, Social e Governança. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, o termo foi pouco procurado ao longo de toda a primeira década deste século e boa parte da segunda. Até que começou a subir sem parar a partir de 2019. No Brasil, o aumento agudo das buscas aconteceu um ano depois.

O mercado financeiro foi o precursor do fenômeno. Em dezembro de 2018, nenhum fundo de ações da categoria sustentabilidade/governança da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), que reúne instituições como bancos e corretoras, tinha as siglas ESG ou ASG no nome. Dois anos depois, eles já eram 15. De uma hora para outra, a sigla ESG parece estar em tudo quanto é lugar. Na rede social LinkedIn, surgiu uma quantidade enorme de “especialistas” no campo, profissionais de diferentes áreas, como consultorias e relações públicas.

A mudança é um novo e positivo capítulo da onda de responsabilidade social corporativa do início do século. Seus protagonistas estão cada vez mais preocupados com a preservação do meio ambiente, com o combate aos preconceitos de cor, gênero e religião e com a defesa de políticas de governança responsáveis. Seguindo essa toada, empresas vêm tentando mostrar o que já fazem nessas áreas, criam novas metas e tratam de evitar eventuais danos de reputação historicamente associados a elas.

É como se o economista Milton Friedman tivesse errado numa de suas conclusões mais célebres. Ele dizia que a maior responsabilidade social das empresas era gerar lucro, e seus executivos deveriam dar prioridade aos interesses dos acionistas. Na verdade, Friedman não previu o universo corporativo atual, sujeito a boicotes e cancelamentos disparados na velocidade das redes sociais, em que o próprio lucro passa a depender da reputação e das políticas adotadas nas áreas ambiental, social e de governança.

Embora o movimento ESG deva ser incentivado, uma questão merece atenção: quais empresas fazem um trabalho exemplar de fato e quais só estão preocupadas em polir a própria imagem? Chegar à resposta é determinante para ajudar consumidores a escolher de quem querem comprar, trabalhadores a definir onde querem buscar empregos e aplicadores a decidir onde colocar o dinheiro.

O mercado financeiro promove iniciativas para descobrir. Grandes investidores, que, juntos, detêm US$ 17 trilhões em ativos e estão espalhados por 28 países — Brasil inclusive —, formaram uma coalizão e pediram mais transparência a 1.320 empresas. Organizados sob o guarda-chuva da CDP, uma ONG, eles querem informações sobre os riscos climáticos de cada uma. Os alvos incluem Amazon, Facebook e Tesla. Entre as 16 brasileiras, estão a Even Construtora e a Totvs.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o xerife do mercado de capitais, também está atenta ao uso indiscriminado de “ESG” e “ASG”. É esperada para breve a publicação de normas para definir pré-requisitos aos fundos que queiram colocar a sigla no nome e para exigir informações mais detalhadas nos balanços das companhias abertas. Transparência é o caminho.

O que o novo sistema eleitoral de Nova York tem a ensinar ao Brasil

O Globo

É provável que o próximo prefeito de Nova York seja um democrata. A dúvida é quem. Treze candidatos concorreram nas primárias do dia 22. Eric Adams lidera a apuração com 31,7% dos votos. Mas ninguém tem certeza se levará mesmo, em razão do novo sistema eleitoral adotado, a votação por ordem de preferência.

Pelo método — similar ao usado em San Francisco, Maine e países como a Austrália —, o eleitor precisa, na hora de votar, ordenar até cinco candidatos segundo sua preferência. Na apuração, caso ninguém obtenha mais de 50% do total, o último colocado é eliminado, e seus votos distribuídos de acordo com a segunda opção. Se o patamar de 50% ainda não tiver sido alcançado, elimina-se o penúltimo e redistribuem-se seus votos. Repete-se o procedimento até alguém atingir 50%.

Por que os nova-iorquinos decidiram adotar um sistema tão abstruso, que torna o voto mais difícil e atrasa os resultados? Não seria mais natural eleger Adams, o mais votado, ou submetê-lo a um segundo turno contra Maya Wiley, a segunda colocada com 22,3%? Defensores da votação preferencial argumentam que não. Dizem que ela afasta a maior chaga da política contemporânea: a polarização. Afirmam que inibe a armadilha do voto útil, abre espaço a candidaturas mais diversas e impede o êxito dos aventureiros.

As evidências em favor dessa visão são frágeis. A FairVote analisou 236 eleições com votação preferencial nos Estados Unidos. Em apenas 15 delas o vencedor não foi o líder na primeira rodada. Em 13 foi o segundo, em duas o terceiro. Em apenas 0,8% dos casos, portanto, as preferências foram distintas do que ocorreria se os dois primeiros se enfrentassem no segundo turno.

O cientista político Jason McDaniel, da Universidade de San Francisco, afirma que o efeito na polarização também é controverso, já que a profusão de opções incentiva o voto segundo estereótipos. Numa pesquisa com várias cidades, ele concluiu que o sistema reduz o comparecimento em até 5%.

É antigo o problema de escolher o método mais justo de eleição. O escritor Lewis Carroll chegou a publicar um ensaio a respeito. O filósofo Condorcet demonstrou que nem toda votação preferencial tem vencedor, pois pode haver resultado circular (o candidato A é preferido ao B; o B ao C; o C ao A). Critérios de decisão como eliminar o último colocado (usado em Nova York) ou atribuir pontos aos candidatos (a “contagem de Bordas”) necessariamente têm custo. Em seu primeiro resultado conhecido, o Nobel de Economia Kenneth Arrow demonstrou ser impossível haver um método eleitoral capaz de, ao mesmo tempo, respeitar a vontade da maioria, apontar um vencedor claro e evitar a armadilha do voto útil.

Em Nova York, complicaram a vida do eleitor para um benefício incerto. É por isso que, no Brasil, precisamos ter cautela com propostas que circulam no Congresso, como a exigência do voto impresso ou as alquimias do distritão e das federações partidárias. Arrow provou que não há sistema eleitoral perfeito. Mas o caso nova-iorquino mostra que sempre dá para piorar.

Riscos podem atrapalhar a queda da inflação à meta

Valor Econômico

Apenas políticas monetária e fiscal consistentes poderão assegurar que, de fato, a inflação excessivamente alta volte à meta

A inflação segue muito alta e deve atingir um pico de 8,4% em junho, acumulada em doze meses. Mas o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central antecipa, em seu Relatório Trimestral de Inflação, divulgado na semana passada, que vá entrar numa trajetória de declínio, até chegar a 3,5% em meados do próximo ano, coincidindo com a meta de 2022.

Caso se confirme, será uma considerável desinflação, de quase cinco pontos percentuais. Uma parte se deverá apenas à força da gravidade, assim que se dissiparem choques temporários, como a alta do dólar e commodities. Mas a inflação seria mais persistente se o comitê não tivesse adotado uma postura mais firme, sinalizando que vai retirar todos os estímulos neste ano.

Esse cenário benigno está condicionado a vários riscos. O principal deles é a fragilidade fiscal, que o Banco Central identifica como preponderante, apesar da pequena melhora recente. Na primeira onda da pandemia, os analistas econômicos temeram que a dívida bruta pudesse chegar perto de 100% do Produto Interno Bruto (PIB). Projeções mais recentes de economistas influentes citam percentuais tão baixos quanto 82% do PIB.

Essas revisões representam um alívio, mas não eliminam o risco. Parte da queda se deve à alta inflação interna, que, como dito, chegará a 8,4% em junho. Parte se deve à alta do preços de commodities, que aumenta o deflator do PIB e favorece a atividade econômica e a arrecadação. Caso caia a 82% do PIB, ainda estará cerca de 30 pontos percentuais acima da média dos emergentes.

Sem superávit primário, não se pode falar em sustentabilidade da dívida. São inúmeras as ameaças à disciplina fiscal, como salientou o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, na divulgação do Relatório de Inflação. “O arcabouço do teto de gastos tem sido desafiado com alguma frequência”, disse. “Temos um ano de eleições pela frente”.

Não é só a política fiscal que coloca uma sombra no cenário de convergência da inflação para a meta. No relatório, o Banco Central publica alguns exercícios sobre os impactos de uma eventual remoção mais abrupta dos estímulos monetários pelo Federal Reserve (Fed). Esse não é o cenário principal, já que o chairman do Fed, Jerome Powell, vem prometendo anunciar seus movimentos previamente.

Mas há riscos relevantes de a inflação americana surpreender para cima, depois dos grandes pacotes de estímulo fiscal e monetário nos Estados Unidos. O fantasma é a repetição do chamado “taper tantrum”, de 2013, quando o então chairman do Fed, Ben Bernanke, removeu estímulos quantitativos que haviam sido injetados em resposta à grande crise financeira de 2008. Na ocasião, o dólar subiu 20% ante o real.

O Banco Central fez alguns cálculos para estimar o que aconteceria com a inflação se houvesse um repeteco do “taper tantrum”. Nessa situação, a inflação de 2022 ficaria em 4,7%, em vez dos 3,5% originalmente projetados. Bem acima do centro da meta (3,5%) e muito perto do teto (4,75%).

Uma outra simulação assume a hipótese de trabalho de que o dólar suba 20% no terceiro trimestre, mas recue no trimestre seguinte. Nesse caso, a inflação de 2022 ficaria até mais baixa do que a meta, em 3,2%. O dólar, num primeiro momento, aceleraria os preços temporariamente, mas depois provocaria uma queda com maior intensidade.

O BC diz que está alerta a esse risco, mas os membros do Copom não o consideram, por enquanto, forte o suficiente para figurar no topo de suas preocupações.

Há um fator, por outro lado, que poderia derrubar a inflação abaixo da trajetória desenhada pelo BC: um recuo nos preços de commodities em reais. Isso poderia ocorrer tanto porque o dólar cairia a cotação atualizada correspondente aos R$ 4,11 vigentes antes da pandemia ou porque as cotações de metais ou alimentos retomariam a sua tendência mais baixa anterior.

Eventos como esse poderiam baixar a inflação de 2022 entre 0,4 ponto percentual e 1,3 ponto percentual em relação ao previsto. Nesse cenário, o índice de preços poderia até cair abaixo do centro da meta, ficando em valores entre 2,2% e 3,1%.

São simulações úteis para quantificar o quanto diferentes choques podem nos afetar, mas é importante notar que se trata de cenários menos prováveis, dependentes de fatores fora do nosso controle direto. Apenas as políticas monetária e fiscal consistentes poderão assegurar que, de fato, a inflação excessivamente alta vá cair à meta.

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