Para Sergio Fausto, superintendente da Fundação FHC, é improvável êxito de terceira via
Por César Felício / Valor Econômico
SÃO PAULO - Superintendente executivo da
Fundação Fernando Henrique Cardoso, o cientista político Sergio Fausto traça um
cenário sombrio para o país nos próximos anos. Ele vê poucas chances para o
surgimento de um candidato que quebre a polarização entre o presidente Jair
Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no próximo ano. E
neste quadro, ele teme pela institucionalidade do país.
Para Fausto, caso Lula vença, hipótese que
ele avalia como bastante possível, há riscos de Bolsonaro tentar desestabilizar
o país e forçar uma intervenção militar e a campanha do presidente pelo voto
impresso, em sua opinião, é um indicativo nesse sentido. Se Bolsonaro se
reeleger com folga, a marcha para um regime autoritário seria acelerada. Caso a
reeleição se dê de forma apertada, haveria um quadro de elevada instabilidade.
“O risco à democracia no Brasil só tem feito aumentar ao longo dos últimos
anos”, afirma. Ele considera ingênuo acreditar que Bolsonaro pode moderar sua
linha de ação.
“Em uma vitória do Bolsonaro pessoas
importantes podem decidir sair do país. É cenário de plano inclinado”
Segundo Fausto, que conversou com o Valor na tarde da
quarta-feira - dois dias antes do depoimento do deputado Luis Miranda (DEM-DF)
que afirmou ter o presidente Jair Bolsonaro comentado suspeitar que
irregularidades no Ministério da Saúde estivessem relacionadas com o líder do
governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR) - as denúncias de corrupção
em compra de vacinas, uma das linhas investigativas da CPI da Covid no Senado,
podem causar dano político grave ao presidente.
Tudo dependerá, na sua visão, de se
comprovar algum nexo entre irregularidades no Ministério da Saúde e o Palácio
do Planalto. Já há movimentos na CPI para se considerar o presidente culpado ao
menos de prevaricação, uma vez que não teria tomado providências concretas ao
escutar a denúncia do parlamentar. O Palácio do Planalto nega veementemente que
o diálogo relatado por Miranda tenha existido.
“Podemos ter um Congresso que preserve suas
prerrogativas convivendo com uma situação de cerceamento da liberdade”
O escândalo não será suficiente, contudo,
para desencadear um processo de impeachment, para o qual ele não vê
possibilidade, em posição mantida pelo cientista político, mesmo após as
declarações de Miranda, sobre as quais foi consultado no sábado. O panorama
econômico a curto prazo é de melhora, a base governista no Congresso é sólida e
as manifestações populares não mandam um sinal claro.
O cientista político vê o Congresso apático na defesa das instituições brasileiras e teme que o Legislativo abra mão de prerrogativas para manter o poder excepcional que ganhou para gerir o Orçamento, nos próximos anos. Mas acredita que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não são imunes a pressões que possam surgir da opinião pública.
Eis os principais trechos da conversa com o Valor:
Valor: Como o senhor vê o cenário eleitoral em 2022? A
polarização está consolidada?
Sergio Fausto: Aqui não é
desejo. Se eu pudesse transformar desejo em realidade eu magicamente criaria
uma alternativa entre o Lula e o Bolsonaro. É evidente que a hipótese de terceira
via existe, mas nada aponta na direção de uma candidatura que potencialmente
possa expressar uma alternativa aos dois. Este cenário é improvável. O cenário
mais provável é de polarização entre os dois candidatos que estão aí claramente
colocados. Desde logo digo que não há equivalência entre eles. Desta dupla,
extremista só tem um e não é o presidente Lula.
Valor: Diante dos riscos existentes, vale a pena
apostar em terceira via?
Fausto: Acho que sim. Tem mérito intrínseco. Na vida a gente fica esperando o inevitável e acontece o inesperado. Existe potencialmente uma massa de eleitores que preferia não ter que fazer a opção entre Lula e Bolsonaro. É uma espécie de latência eleitoral que permite imaginar que a terceira via tem alguma chance. A política requer coragem e ousadia. Quando mais não seja, para poder negociar uma frente no segundo turno em outra posição, com mais cacife.
Valor: O Lula representaria uma ameaça concreta à
reeleição do Bolsonaro?
Fausto: Sim. Eu acho
que se a eleição se realizasse hoje eu diria que o Lula seria claramente
favorito. A economia dá sinais de retomada, mas isso ainda não chegou no
mercado de trabalho. A pandemia continua correndo solta. Acho que nessas
circunstâncias o Lula seria claramente favorito. No correr do ano que vem
provavelmente estaremos melhor do ponto de vista da pandemia e da economia.
Acho que dá para supor que a vacinação vai se acelerar e que a retomada da
economia se confirmará. Terá efeitos lentos e defasados no mercado de trabalho,
o que tende a favorecer o incubente. Vamos ter uma situação econômica que não
será determinante. Ela não será exuberante para favorecer o Bolsonaro de
maneira decisiva, mas ela não será impeditiva da reeleição. Os fatores que vão
entrar serão sobretudo a capacidade de construir alianças e se comunicar com o
sentimento da população. O Lula tem condições de caminhar para o centro, tem
clareza que este é o caminho para ganhar a eleição. Ele representa a maior
ameaça que o Bolsonaro poderia enfrentar em sua reeleição.
Valor: A CPI começa a enveredar agora para a
investigação de eventual corrupção no governo. Considerando os precedentes de
outras CPIs, que impacto político podemos esperar?
Fausto: É preciso ver
qual é o efeito real dessas denúncias. Há indícios que apontam no sentido de
que algo estranho aconteceu nos contratos da Covaxin, mas a pergunta é: isso
entra no Palácio do Planalto? Se entrar é um cenário de grave dano político. Se
é um episódio de corrupção, ainda que grave, mas que se circunscreva ao
Ministério da Saúde, que pegue alguns agentes políticos, mas que fique a uma
distância razoável do presidente, o dano não é determinante. É natural que
desperte uma grande excitação na imprensa, mas francamente ainda é cedo. Se for
algo que entre no Palácio é grave porque Bolsonaro ainda conserva como um ativo
a imagem de ter um governo sem corrupção.
Valor: Não é gatilho, de toda forma, para um eventual
impeachment?
Fausto: Eu não vejo
nenhuma chance de impeachment. Para isso a economia teria que estar ruim, com
tendência de piora, tem que ter rua e tem que ter apoio majoritário no
Congresso. Começa a ter alguma rua, mas a perspectiva da economia é de melhora
e apoio no Congresso está relativamente consolidado. Ele deu uma situação muito
favorável ao chamado Centrão alargado para manter o presidente na posição em
que ele está e extrair o máximo de benefícios possível. Isso é ruim para o país
mas do ponto de vista político é um jogo sustentável.
Valor: Essas são as premissas de cenário dos quais o
senhor parte. Agora, na hipótese de vitória do Lula contra Bolsonaro, o senhor
vê risco dele não assumir?
Fausto: Esse risco
não pode ser desconsiderado e já é muito grave que essa pergunta possa ser
feita sem soar desprovida de sentido. Nas circunstâncias brasileiras atuais ela
faz sentido e isso é muito ruim. Eu não acredito que Lula seria impedido de
tomar posse, mas pode haver tentativas de melar o jogo. E essas tentativas
estão às escâncaras, puxadas pelo voto impresso. O Bolsonaro tem a vantagem de
que ele antecipa seus movimentos e é transparente nas suas intenções. Ele vem
dizendo que ou tem o voto impresso, ou a eleição será fraudada. Ele chegou a
dizer que em 2018 venceu no primeiro turno. É a repetição do que Trump fez. Ele
vem insuflando e arregimentando apoios, vem armando setores da população. Ele
tem estimulado comportamentos que apontam na direção de desobediência das
polícias militares. A hipótese de haver muita tensão, episódios de violência e
uma tentativa de criar um clima de anarquia deliberado para provocar uma
intervenção das Forças Armadas e neste sentido impedir a posse eventual na
hipótese de vitória de Lula não é um cenário de lunáticos, acho que ele tem que
ser levado em consideração. Mas insisto que é um cenário de baixa
probabilidade. Para se proibir a posse de um presidente eleito com a maioria de
votos no segundo turno é necessário ter respaldo integral das Forças Armadas e
respaldo dos poderes fáticos: o empresariado todo atrás de você e respaldo
internacional. Para dizer de uma maneira simples: se Trump tivesse vencido a
eleição americana eu estaria mais preocupado. Haja vista a manifestação do
governo americano reconhecendo a vitória de Pedro Castillo nas eleições
peruanas.
Valor: O senhor mencionou o Peru. Lá setores
tradicionalmente liberais da política, como por exemplo o escritor Mario Vargas
Llosa, contestaram a vitória de Castillo e sugeriram necessidade de recontagem
de votos. A polarização lá parece ter chegado a um ponto de ruptura. Isso não
pode se repetir no Brasil?
Fausto: Em relação a
Vargas Llosa, para usar uma expressão usual no mundo hispânico, “se le fue la
mano”. Quando você por razões subjetivas vê no adversário político uma ameaça
existencial, significa que a polarização transformou o adversário em um
inimigo, que põe em risco a sua própria vida. Quando uma parte da sociedade se
convence disso está disposta a qualquer coisa. A questão que vejo em Bolsonaro
para 2022 é a seguinte: eleição é sempre uma combinação e medo. Ele tem o medo.
Que esperança ele vai vender?
Valor: No Brasil este sentimento visceral de aversão
não pode tomar conta do que o senhor chamou de “poderes fáticos” em relação ao
Lula?
Fausto: Uma parte
sim. Isso é muito forte no setor rural brasileiro. Mas ao contrário do que
aconteceu em 2018 o Bolsonaro, a meu ver, não conseguirá reaglutinar o conjunto
heterogêneo de forças. E o Lula está em condições, em tese, de reunir um quadro
de alianças amplo. Não é à toa que Bolsonaro escalou na sua retórica e na sua
agressividade a partir do momento em que Lula recuperou seus direitos
políticos. Ele gostaria de polarizar com o PT, mas não com o Lula. O PT é uma
coisa, o Lula é outra. Um candidato do PT seria derrotável com certa
tranquilidade pelo Bolsonaro. O Lula cruza fronteiras que o PT não cruza. Ele
cravou imagem na memória popular de forma impressionante. Essa é uma
constatação, não um juízo de mérito.
Valor: E outro cenário? E se tudo der certo para o
Bolsonaro? E se ele se reeleger com certa facilidade? Como fica o ambiente
institucional?
Fausto: Qual é a
visão de mundo e a estratégia de Bolsonaro? Elas são transparentes como água.
Ele vem fazendo movimentos de maneira sistemática. Ele vem capturando órgãos do
Estado brasileiro para servir interesses de seu grupo. Ele nomeará outros
integrantes do Supremo, ele vai intervir em outras instâncias do Judiciário.
Não há a menor dúvida de qual a direção ele pretende tomar e as instituições e
as pessoas começam a desanimar. Em uma vitória do Bolsonaro pessoas importantes
podem decidir sair do país. É um cenário de plano inclinado, por isso que não é
exagero nenhum dizer que em 2022 a gente estará jogando a sorte da democracia
no Brasil.
Valor: Não tem risca de giz que pode ser traçada com
ele reeleito, não haverá como contê-lo?
Fausto: Não. Estes
movimentos de conversão de um regime democrático em regimes já não mais
democráticos, ainda que conservem alguns aspectos, eles não são abruptos. Em
determinados momentos eles aceleram e já entramos neste processo
significativamente. Se Bolsonaro se reelege é uma inflexão para baixo. Seria um
acontecimento dramático para o Brasil e para o mundo. Com uma consideração
importante: vai acontecer a eleição de meio de mandato nos Estados Unidos, a
eleição presidencial na França, na Itália a extrema-direita coloca em xeque o
gabinete Mario Draghi. Pode ter nova guinada da direita internacional que
acentua o risco. O eventual segundo mandato de Bolsonaro é o de um presidente
autoritário buscando consolidar o seu poder, em uma situação instável, em que a
recuperação econômica é moderada e a insatisfação cresce. Nada disso é bom.
Valor: Quando comparamos o caso brasileiro ao de
outros países que foram paulatinamente fechando o regime, como Hungria,
Turquia, Rússia, El Salvador, há uma diferença potencialmente grande. Os
governantes desses países saíram com claro mandato das urnas, vitórias
expressivas. E o cenário em 2022, em uma reeleição, seria de vitória apertada
de Bolsonaro. O que isso muda na análise?
Fausto: De fato,
todos esses países tiveram segundos mandatos acompanhados de economia em
crescimento. No caso brasileiro, eu não vejo nenhum crescimento espetacular da
economia nos próximos anos, o que não significa que Bolsonaro tentará se
moderar. É de uma ingenuidade completa acreditar que ele irá moderar suas
ações. O que pode haver em um segundo mandato com essa característica é uma
instabilidade política com um nível de conflito social muito elevado. A gente
entra em um terreno não mapeado. O risco de se ter uma intervenção militar para
restabelecer a ordem não pode ser descartado. Em um cenário como esse, de
governo reeleito por margem apertada, que custa avançar no projeto autoritário,
mas que não tem economia que o respalde e tem conflito social, o presidente
pode buscar crescer no caos como uma espécie de princípio de ordem. Eu não
creio que nesse cenário ele seja o líder de uma intervenção militar. Mas as
Forças Armadas podem ser induzidas a intervir no cenário político. Estamos
deslizando em gelo fino. O risco à democracia no Brasil só tem feito aumentar
ao longo dos últimos anos.
Valor: E o papel do Congresso? O bolsonarismo não vai
conseguir ter muito mais deputados do que ele já tem. O Congresso é um dique a
favor da democracia?
Fausto: Que ele é um
dique não há a menor dúvida. O lado bom disso é que pode estancar ímpetos
autoritários. O lado ruim é que o padrão de alocação de recursos que o
Congresso com seu jogo com o Executivo acaba por produzir é ruim para o país. O
Congresso hoje tem uma capacidade de comandar o gasto público como jamais teve,
o que não seria má notícia se viesse acompanhado de uma responsabilidade moral
e institucional. O Congresso hoje está em uma situação privilegiada. Aumentou
sua capacidade de determinar alocação de recursos ao Orçamento, mas não se
responsabiliza pelos resultados. Não há submissão ao escrutínio da opinião
pública. Mantém uma democracia de baixa qualidade.
Valor: O Congresso pode se tornar sócio de um projeto
autoritário, que preserve este poder sobre o Orçamento?
Fausto: Sim. O que
interessa ao Congresso, do ponto de vista de uma boa maioria, é poder ter não
apenas acesso a recursos, mas não ter que prestar absoluta vassalagem ao
Executivo. Preservando esta autonomia, temo que uma boa parte dos nossos
parlamentares mandariam às favas os escrúpulos de consciência. A política para
eles é um negócio de reproduzir políticos. Podemos ter um Congresso que
preserve suas prerrogativas convivendo com uma situação de cerceamento da
liberdade.
Valor: O presidente da Câmara e do Senado não são
pouco cobrados a mostrar compromisso com a institucionalidade?
Fausto: É um erro a falta de cobrança. Mas há um realismo brutal e paralisante. De onde menos se espera é que não vem nada mesmo. Mas é um erro. Tanto Arthur Lira quanto Rodrigo Pacheco são animais políticos e não são completamente insensíveis à pressão da opinião pública. Em particular o presidente do Senado, que vem de um Estado, Minas Gerais, onde a sociedade organizada tem maior peso.
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