segunda-feira, 28 de junho de 2021

Entrevista | Sergio Fausto: “Em 2022, a gente estará jogando a sorte da democracia”

Para Sergio Fausto, superintendente da Fundação FHC, é improvável êxito de terceira via

Por César Felício / Valor Econômico

SÃO PAULO - Superintendente executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, o cientista político Sergio Fausto traça um cenário sombrio para o país nos próximos anos. Ele vê poucas chances para o surgimento de um candidato que quebre a polarização entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no próximo ano. E neste quadro, ele teme pela institucionalidade do país.

Para Fausto, caso Lula vença, hipótese que ele avalia como bastante possível, há riscos de Bolsonaro tentar desestabilizar o país e forçar uma intervenção militar e a campanha do presidente pelo voto impresso, em sua opinião, é um indicativo nesse sentido. Se Bolsonaro se reeleger com folga, a marcha para um regime autoritário seria acelerada. Caso a reeleição se dê de forma apertada, haveria um quadro de elevada instabilidade. “O risco à democracia no Brasil só tem feito aumentar ao longo dos últimos anos”, afirma. Ele considera ingênuo acreditar que Bolsonaro pode moderar sua linha de ação.

“Em uma vitória do Bolsonaro pessoas importantes podem decidir sair do país. É cenário de plano inclinado”

Segundo Fausto, que conversou com o Valor na tarde da quarta-feira - dois dias antes do depoimento do deputado Luis Miranda (DEM-DF) que afirmou ter o presidente Jair Bolsonaro comentado suspeitar que irregularidades no Ministério da Saúde estivessem relacionadas com o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR) - as denúncias de corrupção em compra de vacinas, uma das linhas investigativas da CPI da Covid no Senado, podem causar dano político grave ao presidente.

Tudo dependerá, na sua visão, de se comprovar algum nexo entre irregularidades no Ministério da Saúde e o Palácio do Planalto. Já há movimentos na CPI para se considerar o presidente culpado ao menos de prevaricação, uma vez que não teria tomado providências concretas ao escutar a denúncia do parlamentar. O Palácio do Planalto nega veementemente que o diálogo relatado por Miranda tenha existido.

“Podemos ter um Congresso que preserve suas prerrogativas convivendo com uma situação de cerceamento da liberdade”

O escândalo não será suficiente, contudo, para desencadear um processo de impeachment, para o qual ele não vê possibilidade, em posição mantida pelo cientista político, mesmo após as declarações de Miranda, sobre as quais foi consultado no sábado. O panorama econômico a curto prazo é de melhora, a base governista no Congresso é sólida e as manifestações populares não mandam um sinal claro.

O cientista político vê o Congresso apático na defesa das instituições brasileiras e teme que o Legislativo abra mão de prerrogativas para manter o poder excepcional que ganhou para gerir o Orçamento, nos próximos anos. Mas acredita que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não são imunes a pressões que possam surgir da opinião pública.

Eis os principais trechos da conversa com o Valor:

Valor: Como o senhor vê o cenário eleitoral em 2022? A polarização está consolidada?

Sergio Fausto: Aqui não é desejo. Se eu pudesse transformar desejo em realidade eu magicamente criaria uma alternativa entre o Lula e o Bolsonaro. É evidente que a hipótese de terceira via existe, mas nada aponta na direção de uma candidatura que potencialmente possa expressar uma alternativa aos dois. Este cenário é improvável. O cenário mais provável é de polarização entre os dois candidatos que estão aí claramente colocados. Desde logo digo que não há equivalência entre eles. Desta dupla, extremista só tem um e não é o presidente Lula.

Valor: Diante dos riscos existentes, vale a pena apostar em terceira via?

Fausto: Acho que sim. Tem mérito intrínseco. Na vida a gente fica esperando o inevitável e acontece o inesperado. Existe potencialmente uma massa de eleitores que preferia não ter que fazer a opção entre Lula e Bolsonaro. É uma espécie de latência eleitoral que permite imaginar que a terceira via tem alguma chance. A política requer coragem e ousadia. Quando mais não seja, para poder negociar uma frente no segundo turno em outra posição, com mais cacife.

Valor: O Lula representaria uma ameaça concreta à reeleição do Bolsonaro?

Fausto: Sim. Eu acho que se a eleição se realizasse hoje eu diria que o Lula seria claramente favorito. A economia dá sinais de retomada, mas isso ainda não chegou no mercado de trabalho. A pandemia continua correndo solta. Acho que nessas circunstâncias o Lula seria claramente favorito. No correr do ano que vem provavelmente estaremos melhor do ponto de vista da pandemia e da economia. Acho que dá para supor que a vacinação vai se acelerar e que a retomada da economia se confirmará. Terá efeitos lentos e defasados no mercado de trabalho, o que tende a favorecer o incubente. Vamos ter uma situação econômica que não será determinante. Ela não será exuberante para favorecer o Bolsonaro de maneira decisiva, mas ela não será impeditiva da reeleição. Os fatores que vão entrar serão sobretudo a capacidade de construir alianças e se comunicar com o sentimento da população. O Lula tem condições de caminhar para o centro, tem clareza que este é o caminho para ganhar a eleição. Ele representa a maior ameaça que o Bolsonaro poderia enfrentar em sua reeleição.

Valor: A CPI começa a enveredar agora para a investigação de eventual corrupção no governo. Considerando os precedentes de outras CPIs, que impacto político podemos esperar?

Fausto: É preciso ver qual é o efeito real dessas denúncias. Há indícios que apontam no sentido de que algo estranho aconteceu nos contratos da Covaxin, mas a pergunta é: isso entra no Palácio do Planalto? Se entrar é um cenário de grave dano político. Se é um episódio de corrupção, ainda que grave, mas que se circunscreva ao Ministério da Saúde, que pegue alguns agentes políticos, mas que fique a uma distância razoável do presidente, o dano não é determinante. É natural que desperte uma grande excitação na imprensa, mas francamente ainda é cedo. Se for algo que entre no Palácio é grave porque Bolsonaro ainda conserva como um ativo a imagem de ter um governo sem corrupção.

Valor: Não é gatilho, de toda forma, para um eventual impeachment?

Fausto: Eu não vejo nenhuma chance de impeachment. Para isso a economia teria que estar ruim, com tendência de piora, tem que ter rua e tem que ter apoio majoritário no Congresso. Começa a ter alguma rua, mas a perspectiva da economia é de melhora e apoio no Congresso está relativamente consolidado. Ele deu uma situação muito favorável ao chamado Centrão alargado para manter o presidente na posição em que ele está e extrair o máximo de benefícios possível. Isso é ruim para o país mas do ponto de vista político é um jogo sustentável.

Valor: Essas são as premissas de cenário dos quais o senhor parte. Agora, na hipótese de vitória do Lula contra Bolsonaro, o senhor vê risco dele não assumir?

Fausto: Esse risco não pode ser desconsiderado e já é muito grave que essa pergunta possa ser feita sem soar desprovida de sentido. Nas circunstâncias brasileiras atuais ela faz sentido e isso é muito ruim. Eu não acredito que Lula seria impedido de tomar posse, mas pode haver tentativas de melar o jogo. E essas tentativas estão às escâncaras, puxadas pelo voto impresso. O Bolsonaro tem a vantagem de que ele antecipa seus movimentos e é transparente nas suas intenções. Ele vem dizendo que ou tem o voto impresso, ou a eleição será fraudada. Ele chegou a dizer que em 2018 venceu no primeiro turno. É a repetição do que Trump fez. Ele vem insuflando e arregimentando apoios, vem armando setores da população. Ele tem estimulado comportamentos que apontam na direção de desobediência das polícias militares. A hipótese de haver muita tensão, episódios de violência e uma tentativa de criar um clima de anarquia deliberado para provocar uma intervenção das Forças Armadas e neste sentido impedir a posse eventual na hipótese de vitória de Lula não é um cenário de lunáticos, acho que ele tem que ser levado em consideração. Mas insisto que é um cenário de baixa probabilidade. Para se proibir a posse de um presidente eleito com a maioria de votos no segundo turno é necessário ter respaldo integral das Forças Armadas e respaldo dos poderes fáticos: o empresariado todo atrás de você e respaldo internacional. Para dizer de uma maneira simples: se Trump tivesse vencido a eleição americana eu estaria mais preocupado. Haja vista a manifestação do governo americano reconhecendo a vitória de Pedro Castillo nas eleições peruanas.

Valor: O senhor mencionou o Peru. Lá setores tradicionalmente liberais da política, como por exemplo o escritor Mario Vargas Llosa, contestaram a vitória de Castillo e sugeriram necessidade de recontagem de votos. A polarização lá parece ter chegado a um ponto de ruptura. Isso não pode se repetir no Brasil?

Fausto: Em relação a Vargas Llosa, para usar uma expressão usual no mundo hispânico, “se le fue la mano”. Quando você por razões subjetivas vê no adversário político uma ameaça existencial, significa que a polarização transformou o adversário em um inimigo, que põe em risco a sua própria vida. Quando uma parte da sociedade se convence disso está disposta a qualquer coisa. A questão que vejo em Bolsonaro para 2022 é a seguinte: eleição é sempre uma combinação e medo. Ele tem o medo. Que esperança ele vai vender?

Valor: No Brasil este sentimento visceral de aversão não pode tomar conta do que o senhor chamou de “poderes fáticos” em relação ao Lula?

Fausto: Uma parte sim. Isso é muito forte no setor rural brasileiro. Mas ao contrário do que aconteceu em 2018 o Bolsonaro, a meu ver, não conseguirá reaglutinar o conjunto heterogêneo de forças. E o Lula está em condições, em tese, de reunir um quadro de alianças amplo. Não é à toa que Bolsonaro escalou na sua retórica e na sua agressividade a partir do momento em que Lula recuperou seus direitos políticos. Ele gostaria de polarizar com o PT, mas não com o Lula. O PT é uma coisa, o Lula é outra. Um candidato do PT seria derrotável com certa tranquilidade pelo Bolsonaro. O Lula cruza fronteiras que o PT não cruza. Ele cravou imagem na memória popular de forma impressionante. Essa é uma constatação, não um juízo de mérito.

Valor: E outro cenário? E se tudo der certo para o Bolsonaro? E se ele se reeleger com certa facilidade? Como fica o ambiente institucional?

Fausto: Qual é a visão de mundo e a estratégia de Bolsonaro? Elas são transparentes como água. Ele vem fazendo movimentos de maneira sistemática. Ele vem capturando órgãos do Estado brasileiro para servir interesses de seu grupo. Ele nomeará outros integrantes do Supremo, ele vai intervir em outras instâncias do Judiciário. Não há a menor dúvida de qual a direção ele pretende tomar e as instituições e as pessoas começam a desanimar. Em uma vitória do Bolsonaro pessoas importantes podem decidir sair do país. É um cenário de plano inclinado, por isso que não é exagero nenhum dizer que em 2022 a gente estará jogando a sorte da democracia no Brasil.

Valor: Não tem risca de giz que pode ser traçada com ele reeleito, não haverá como contê-lo?

Fausto: Não. Estes movimentos de conversão de um regime democrático em regimes já não mais democráticos, ainda que conservem alguns aspectos, eles não são abruptos. Em determinados momentos eles aceleram e já entramos neste processo significativamente. Se Bolsonaro se reelege é uma inflexão para baixo. Seria um acontecimento dramático para o Brasil e para o mundo. Com uma consideração importante: vai acontecer a eleição de meio de mandato nos Estados Unidos, a eleição presidencial na França, na Itália a extrema-direita coloca em xeque o gabinete Mario Draghi. Pode ter nova guinada da direita internacional que acentua o risco. O eventual segundo mandato de Bolsonaro é o de um presidente autoritário buscando consolidar o seu poder, em uma situação instável, em que a recuperação econômica é moderada e a insatisfação cresce. Nada disso é bom.

Valor: Quando comparamos o caso brasileiro ao de outros países que foram paulatinamente fechando o regime, como Hungria, Turquia, Rússia, El Salvador, há uma diferença potencialmente grande. Os governantes desses países saíram com claro mandato das urnas, vitórias expressivas. E o cenário em 2022, em uma reeleição, seria de vitória apertada de Bolsonaro. O que isso muda na análise?

Fausto: De fato, todos esses países tiveram segundos mandatos acompanhados de economia em crescimento. No caso brasileiro, eu não vejo nenhum crescimento espetacular da economia nos próximos anos, o que não significa que Bolsonaro tentará se moderar. É de uma ingenuidade completa acreditar que ele irá moderar suas ações. O que pode haver em um segundo mandato com essa característica é uma instabilidade política com um nível de conflito social muito elevado. A gente entra em um terreno não mapeado. O risco de se ter uma intervenção militar para restabelecer a ordem não pode ser descartado. Em um cenário como esse, de governo reeleito por margem apertada, que custa avançar no projeto autoritário, mas que não tem economia que o respalde e tem conflito social, o presidente pode buscar crescer no caos como uma espécie de princípio de ordem. Eu não creio que nesse cenário ele seja o líder de uma intervenção militar. Mas as Forças Armadas podem ser induzidas a intervir no cenário político. Estamos deslizando em gelo fino. O risco à democracia no Brasil só tem feito aumentar ao longo dos últimos anos.

Valor: E o papel do Congresso? O bolsonarismo não vai conseguir ter muito mais deputados do que ele já tem. O Congresso é um dique a favor da democracia?

Fausto: Que ele é um dique não há a menor dúvida. O lado bom disso é que pode estancar ímpetos autoritários. O lado ruim é que o padrão de alocação de recursos que o Congresso com seu jogo com o Executivo acaba por produzir é ruim para o país. O Congresso hoje tem uma capacidade de comandar o gasto público como jamais teve, o que não seria má notícia se viesse acompanhado de uma responsabilidade moral e institucional. O Congresso hoje está em uma situação privilegiada. Aumentou sua capacidade de determinar alocação de recursos ao Orçamento, mas não se responsabiliza pelos resultados. Não há submissão ao escrutínio da opinião pública. Mantém uma democracia de baixa qualidade.

Valor: O Congresso pode se tornar sócio de um projeto autoritário, que preserve este poder sobre o Orçamento?

Fausto: Sim. O que interessa ao Congresso, do ponto de vista de uma boa maioria, é poder ter não apenas acesso a recursos, mas não ter que prestar absoluta vassalagem ao Executivo. Preservando esta autonomia, temo que uma boa parte dos nossos parlamentares mandariam às favas os escrúpulos de consciência. A política para eles é um negócio de reproduzir políticos. Podemos ter um Congresso que preserve suas prerrogativas convivendo com uma situação de cerceamento da liberdade.

Valor: O presidente da Câmara e do Senado não são pouco cobrados a mostrar compromisso com a institucionalidade?

Fausto: É um erro a falta de cobrança. Mas há um realismo brutal e paralisante. De onde menos se espera é que não vem nada mesmo. Mas é um erro. Tanto Arthur Lira quanto Rodrigo Pacheco são animais políticos e não são completamente insensíveis à pressão da opinião pública. Em particular o presidente do Senado, que vem de um Estado, Minas Gerais, onde a sociedade organizada tem maior peso.

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