EDITORIAIS
Entre a euforia e a fome
O Estado de S. Paulo
Com menos carne no prato e mais lucros na bolsa de valores, o tema dos “dois brasis” ganha uma versão atualizada. Já não se trata apenas da diferença entre regiões mais e menos desenvolvidas, mas do contraste agora acentuado entre duas populações, uma ainda bafejada pelos ventos da prosperidade e outra condenada a batalhar, no dia a dia, por uma sobrevivência muito difícil. Diante de recordes seguidos no mercado de ações, especialistas preveem o Ibovespa em 145 mil pontos até o fim do ano, com elevação de 22% em 12 meses. Enquanto isso, milhões dependem de campanhas de solidariedade para escapar da fome, embora as feiras e supermercados tenham comida mais que suficiente para alimentar todos os brasileiros.
A alimentação é o mais feio indicador dos problemas de milhões de famílias. O consumo de carne por habitante deve ficar em 26,4 quilos neste ano, segundo estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura. Será o menor volume da série iniciada em 1996. A queda fica mais impressionante quando se toma como referência a média de 2013, pico da série: 96,7 quilos por pessoa.
Mas a carne menos acessível é apenas um
símbolo do empobrecimento. A pobreza vem aumentando há anos, especialmente a
partir da recessão de 2015-2016, mas o quadro piorou desde o ano passado,
quando chegou a pandemia. Apesar do baixo consumo, a inflação subiu e
combinou-se de forma desastrosa com o desemprego.
O preço da carne aumentou 35,7% em 12
meses, segundo a última prévia da inflação, o Índice Nacional de Preços ao
Consumidor – 15 (IPCA-15). O encarecimento geral do item alimentação e bebidas
foi menor (12,2%), mas também essa taxa é muito alta. Além disso, esse dado é
uma média. Os componentes são bem piores. O caso da carne é um exemplo
expressivo, mas há outros números assustadores. Os preços de óleos e gorduras
aumentaram 53,9% nesse período. O item cereais, leguminosas e oleaginosas,
incluídos arroz e feijão, encareceu 40,8%. Os preços de leite e derivados
subiram 11,3%.
Como outros bens e serviços essenciais
também ficaram menos acessíveis, a composição dos gastos ficou mais complicada.
Gasta-se energia para cozinhar arroz e feijão. Em 12 meses o item combustíveis
de uso doméstico ficou 21,1% mais caro. O principal componente desse grupo é,
obviamente, o gás. Também a eletricidade é básica. A tarifa residencial subiu
8%.
A inflação foi em grande parte alimentada
pelas cotações externas de alimentos, minerais metálicos e petróleo. Essas
cotações, puxadas principalmente pela recuperação chinesa, renderam bons ganhos
aos exportadores brasileiros. Mas afetaram os preços cobrados em supermercados
e feiras. Além disso, a inflação brasileira foi também turbinada pela alta do
dólar, consequência das palavras e atos irresponsáveis do presidente Jair
Bolsonaro.
Somada à irresponsabilidade presidencial, a
condução precária da política econômica tem favorecido a insegurança nos
mercados, o fraco desempenho da indústria de transformação e o prolongamento de
altas taxas de desemprego. A desocupação chegou no primeiro trimestre a 14,7%
da força de trabalho, com 14,8 milhões de desempregados e, num balanço mais
amplo, 33,2 milhões de pessoas subutilizadas. Sem inflação, esses números já
indicariam claramente um desastre social. Mas a inflação, além de já ter
infernizado a maioria das famílias desde o ano passado, continua acelerada e
poderá estourar neste ano o limite de tolerância de 5,25%.
Medidas claras, sensatas e bem coordenadas
de combate à pandemia, em nível nacional, poderiam ajudar a aceleração
econômica e a criação de empregos. O País fechou o primeiro trimestre ainda com
um recuo econômico de 3,8% acumulado em 12 meses. Mas nada autoriza a
expectativa de um surto de sensatez, competência e responsabilidade na
Presidência da República. No mercado financeiro, continua-se a festejar a
expansão de 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) no período janeiro-março.
Milhões de famílias ainda esperam convite para essa festa.
Confusão com a ação civil pública
O Estado de S. Paulo
Por maioria de votos, o Supremo Tribunal
Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação
Civil Pública (Lei 7.347/1985), que foi alterado pela Lei 9.494/1997. Seguindo
o relator, ministro Alexandre de Moraes, o plenário entendeu que os efeitos de
decisão em ação civil pública não devem ter limites territoriais. Caso
contrário, haveria restrição ao acesso à justiça e violação do princípio da
igualdade. Trata-se de uma não pequena confusão, incompatível com os limites do
exercício do poder em um Estado Democrático de Direito.
Perante uma interpretação excessivamente
ampla da Lei 7.347/1985, com decisões liminares de juízes de primeira instância
afetando todo o território nacional e causando grande insegurança jurídica, o
presidente Fernando Henrique Cardoso editou em 1997 a Medida Provisória (MP)
1.570. O texto, que depois foi convertido pelo Congresso na Lei 9.494/1997,
incluiu no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública a expressão “nos limites da
competência territorial do órgão prolator”.
A Exposição de Motivos da MP 1.570/1997
assim dispôs: “Tal proposta resolve uma conhecida deficiência do processo de
ação civil pública que tem dado ensejo a inúmeras distorções, permitindo que
alguns juízes de primeiro grau se invistam de uma pretensa ‘jurisdição
nacional’. A despeito das censuras já emitidas pelo STF sobre o mau uso da ação
civil pública, inclusive como instrumento de controle de constitucionalidade
com eficácia contra todos, persistem algumas tentativas de conferir eficácia
universal às decisões liminares ou às sentenças dos juízes de primeiro grau.
Daí a necessidade de que se explicite, de certa forma, o óbvio, isto é, que a
decisão judicial proferida na ação civil pública tem eficácia nos limites da
competência territorial do órgão judicial”.
A Lei 7.347/1985 dispõe que a ação civil
pública é um instrumento de responsabilização por danos morais e patrimoniais,
passível de ser utilizado em diversas áreas; por exemplo, meio ambiente,
patrimônio público e social, direitos do consumidor, urbanismo, além de
interesses difusos e coletivos.
Como se vê, a ação civil pública pode ser
utilizada em muitas e amplas áreas. No entanto, tem um objetivo preciso: a
responsabilização por danos morais e patrimoniais. Não é uma autorização para
que o Poder Judiciário interfira em todos os assuntos e âmbitos da vida
pública. A defesa de um interesse coletivo, por exemplo, não é razão para
ignorar os limites e as competências institucionais.
Por mais importante que seja seu objeto, as
decisões proferidas em ações civis públicas devem respeitar os limites da
competência territorial do órgão do Judiciário. Como dizia a Exposição de
Motivos da MP 1.570/1997, trata-se de uma obviedade, mas, num cenário de
interpretação desproporcionalmente ampla da Lei 7.347/1985, é necessário
recordar o óbvio.
A Constituição de 1988 conferiu uma ampla
proteção dos direitos. A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito, dispõe o art. 5.º. No entanto, isso não significa que
um juiz, na defesa de direitos e interesses coletivos, possa mandar onde ele
não tem o direito de mandar. Na verdade, só há proteção do direito, seja ele
individual ou coletivo, com o respeito aos limites do exercício do poder.
A confusão relativa ao art. 16 da Lei da
Ação Civil Pública revela, assim, dois equívocos. O primeiro refere-se ao poder
do juiz, como se, por um bom motivo social ou coletivo, ele pudesse mandar onde
a lei não permite expressamente. O segundo diz respeito à própria ação civil pública.
Nessa pretensão de universalidade, ela deixa de ser uma ação de
responsabilização, para se converter numa ação onde cabe tudo, até rever
decisões do Executivo, declarar inconstitucionalidade de lei ou anular medidas
políticas.
Sob o pretexto de assegurar efetividade à
ação civil pública, o Judiciário restabeleceu um equívoco que o Executivo e o
Legislativo já tinham corrigido em 1997. Com arbítrio, não se defende nenhum
direito.
A segurança pública
O Estado de S. Paulo
Apesar da promessa de melhorar a segurança
pública, que foi uma das principais bandeiras de sua campanha eleitoral em
2018, as iniciativas tomadas pelo presidente Jair Bolsonaro nessa área em 2020
foram ineficientes e erráticas. Essa é uma das conclusões de estudo elaborado
pelo Instituto Sou da Paz, uma ONG criada há mais de 20 anos por estudantes de
direito de São Paulo com o objetivo de avaliar índices de criminalidade e
desenvolver políticas de redução da violência.
O trabalho levou em conta os dados
estatísticos sobre violência coletados pela União e pelos Estados num ano
marcado por fortes tensões sociais causadas pela pandemia. Por meio de um
monitoramento semanal do Diário Oficial da União também foram
analisadas as 36 mais importantes medidas e normas editadas pelo Ministério da
Justiça, de um total de 293, no campo da segurança pública.
Segundo o estudo, em 2020 foram registradas
mais de 40 mil mortes violentas no País, com um aumento de 5% com relação a
2019. Essa elevação interrompeu a sequência de queda que vinha ocorrendo desde
2017. Já os crimes patrimoniais caíram no primeiro semestre, em decorrência das
políticas de isolamento social adotadas pelos prefeitos e governadores. No Rio
de Janeiro, por exemplo, os roubos de rua tiveram queda de 52% em todo o
Estado, com relação ao mesmo período de 2019. O mesmo ocorreu com o roubo de
veículos e de carga, que caíram 36% e 46%, respectivamente. Já no Estado de São
Paulo o registro de furtos diminuiu 65%. Mas, se por um lado a política de
isolamento social provocou uma queda nos crimes patrimoniais, por outro levou a
um aumento da violência doméstica, em decorrência da maior convivência de
vítimas e agressores.
Diante do aumento de mortes violentas, era
de esperar que o governo Bolsonaro ampliasse o alcance do programa “Em frente, Brasil”,
que foi concebido para reduzir a criminalidade violenta com base numa ação
conjunta entre a União, os Estados e os municípios, afirma o estudo. Contudo,
esse programa não atingiu seu principal objetivo e seu alcance ficou limitado a
apenas cinco municípios. O trabalho do Sou da Paz também chama a atenção para o
aumento da violência policial em diversas regiões, atingindo principalmente a
população jovem e não branca. No Rio de Janeiro, o número de mortes causadas
por policiais nos primeiros cinco meses de 2020 foi o mais alto dos últimos 22
anos. Eles caíram no segundo semestre, não por alguma iniciativa governamental,
mas porque o Supremo Tribunal Federal suspendeu operações policiais em favelas
durante a pandemia.
O estudo também lembra que, apesar de as
operações policiais serem de responsabilidade dos governos estaduais, o governo
federal não só deixou de articular com os governadores um programa destinado a
reduzir a letalidade policial, como também caminhou em linha contrária,
defendendo medidas que enfraquecem a política nacional de controle de
armas.
O trabalho lembra ainda que, apesar de o
Ministério da Justiça ter criado em 2020 uma secretaria específica para
melhorar a gestão do Fundo Nacional de Segurança Pública, uma iniciativa
considerada positiva pelos técnicos e pesquisadores do Sou da Paz, ela não tem
apresentado os resultados esperados. O levantamento revela ainda que os cursos
a distância patrocinados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública para
agentes de segurança de todo o País, considerados essenciais num período de
pandemia, foram reduzidos. Por fim, o estudo afirma que até hoje o Ministério
da Justiça, que está no terceiro ministro desde o início do governo Bolsonaro,
não apresentou o Plano Nacional de Segurança Pública.
Segundo os técnicos e pesquisadores do Sou
da Paz, essa atuação inepta e confusa do governo decorre do “fato de que o
presidente direciona sua energia para as políticas de descontrole das armas e
fomenta imbróglios jurídicos”. E isso só tende a multiplicar os graves
problemas da área de segurança pública, afirmam eles, acertadamente.
O Globo
O Brasil vive duas crises de grandes
proporções. A sanitária é a mais urgente e óbvia, com os números de mortos e
infectados em patamares elevados, enquanto a vacinação segue em ritmo aquém do
necessário. A outra crise, na área da educação, é silenciosa. Não há contagem
diária das perdas, nem estatísticas acompanhadas com afinco. Mas nem por isso é
menos prioritária.
Desde o começo da pandemia, o Brasil é
destaque na lista das grandes economias que menos ofereceram aulas presenciais
a crianças e adolescentes. O ensino remoto foi oferecido com resultados
irregulares em diferentes partes do país. Isso acarretou grande defasagem na
aprendizagem. Na semana passada, o Insper, instituição de ensino superior com
sede em São Paulo, e o Instituto Unibanco, fundação voltada para a área da
educação com presença em todo o país, quantificaram o prejuízo desse
descalabro.
O estudo “Perda de aprendizagem na
pandemia”, liderado pelo economista Ricardo Paes de Barros, estima que o
déficit de aprendizagem entre os estudantes na reta final do Ensino Médio nas
redes estaduais reduzirá entre R$ 20 mil e R$ 40 mil a renda futura de cada um
desses jovens ao longo de suas vidas. Somando os estudantes do Ensino
Fundamental e todos os do Médio, a perda já é de R$700 bilhões. Se nada mudar,
poderá chegar a R$1,5 trilhão.
Para além do prejuízo meramente financeiro,
estão em jogo a qualidade da formação das crianças e, portanto, o futuro do
Brasil. A boa notícia é que as perdas podem ser mitigadas, com senso de
urgência e foco nas três esferas do governo. O estudo relaciona cinco pontos
para melhorar a aprendizagem imediatamente:
1) a permanência dos estudantes na escola
por meio de ações de combate ao abandono e à evasão escolar, que têm aumentado;
2) a implementação de políticas que busquem
ampliar o acesso e a qualidade do ensino remoto;
3) a promoção de atividades que gerem maior
engajamento dos estudantes no ensino remoto;
4) o retorno imediato às atividades
presenciais nas escolas, mesmo que inicialmente de forma híbrida;
5) ações para a recuperação e aceleração do
aprendizado.
O estudo projeta que, caso as aulas com o
ensino híbrido sejam retomas e haja maior engajamento, a perda de aprendizagem
dos alunos no terceiro ano do Médio pode ser reduzida em até 20%. Tendo em
mente que diferentes setores da população foram afetados de forma distinta, é
crucial desenhar uma política pública que responda a vários segmentos. Um foco
de atenção devem ser os alunos no último ano do Médio, que não têm muitos meses
pela frente para recuperar o tempo perdido até aqui.
Num país com uma desigualdade abissal e
histórica, a educação é chave na busca da igualdade de oportunidades para
crianças e jovens pobres. Uma mão de obra com déficit educacional é certeza de
baixa produtividade e também de um crescimento medíocre do PIB no futuro. Por
razões econômicas, sociais e até morais, municípios e estados, sob a orientação
do Ministério da Educação, têm o dever de encarar esse desafio como
prioridade.
Novo desafio ao aborto legal nos EUA
comprova risco do ‘ativismo judicial’
O Globo
Mesmo favorável ao aborto legal, a juíza da Suprema Corte americana Ruth Bader
Ginsburg, ícone do feminismo que morreu no ano passado, via com reserva a
decisão de 1973 que o autorizou nos Estados Unidos, no célebre caso Roe v.
Wade. No voto vencedor, o relator Harry Blackmun vedava restrições ao aborto
enquanto o feto não fosse viável fora do útero (24 semanas de gestação), como
uma extensão natural do direito à privacidade da mulher e ao domínio sobre o
próprio corpo.
Ginsburg, na ocasião uma advogada ativa em
defesa de causas feministas, discordava. Acreditava que a legalização deveria
derivar não da privacidade, mas do direito à igualdade. Sem poder abortar,
dizia ela, as mulheres sempre estariam em desvantagem diante dos homens, que
não arcam com o custo da gravidez nas demais esferas da vida. Ela considerava
que a discussão precisaria avançar até esse ponto antes da legalização, como
acontecia em vários legislativos estaduais. A imposição de uma regra em bases
frágeis poderia ter consequências nefastas no futuro.
Pois o futuro temido por ela chegou. A
Suprema Corte aceitou analisar o caso que, na essência, veta o aborto no estado
de Mississipi, a não ser em exceções pontuais. Na composição atual, com seis
juízes conservadores, é provável que caiam as duas decisões que regulam o
aborto no país, Roe e uma outra de 1992, Planned Parenthood v. Casey, que
aceita restrições desde que não acarretem “ônus indevido” à mulher. Dependendo
do teor da decisão, passará a valer a legislação que proíbe o aborto também
noutros estados, como Geórgia ou Missouri.
A esperança de manutenção da maioria
favorável ao aborto se escorava no presidente da Corte, John Roberts.
Conservador, ele surpreendeu numa decisão sobre uma lei da Louisiana no ano
passado, ao reafirmar Roe com base no princípio jurídico do precedente
estabelecido (stare decisis). A nomeação da conservadora Amy Coney Barrett no
crepúsculo do governo Donald Trump acabou com essa esperança. Barrett sempre
foi uma das vozes mais articuladas contra o aborto nos meios jurídicos. Há hoje
uma maioria de juízes dispostos a derrubar Roe e Casey.
O aborto não é a única questão controversa
na pauta da Corte. O porte de armas e políticas de ação afirmativa serão tema
de novas decisões. Todos têm uma característica comum: são polarizadores. Por
racharem a sociedade com base em crenças religiosas ou ideológicas, costumam
ficar em segundo plano no Legislativo, onde só avança aquilo em que se
vislumbra consenso. Como resultado da militância organizada, caem no colo do
Judiciário.
Independentemente do que se ache sobre tais
temas, é evidente o custo do que se convencionou chamar de “ativismo judicial”.
Era o risco que incomodava Ginsburg. Os fatos mostram que seu alerta era
pertinente. Não só nos Estados Unidos, mas também no Brasil, onde o Supremo
Tribunal Federal, além de arcar com o dever de disciplinar os excessos recorrentes
do Executivo, tem assumido o ônus da omissão do Congresso em questões críticas.
Folha de S. Paulo
Acordo para regular tributação de grandes
empresas pode prover mais justiça
O acordo
de princípios estabelecido no último encontro do G7, grupo que reúne as
maiores economias desenvolvidas, constitui um passo importante para reformar a
tributação sobre grandes empresas multinacionais, que hoje se beneficiam de
falhas do sistema.
As mudanças estariam baseadas em dois
pilares. O primeiro é a imposição de uma taxa mínima de 15% sobre os lucros das
corporações, que valeria para todos os países. O objetivo é interromper a
tendência de queda na taxação observada nas últimas décadas, resultante da
disputa por investimentos.
Com movimentos descoordenados, cada nação
buscou maximizar sua posição e, ao final, todos perderam arrecadação, já que as
empresas intensificaram a busca por domicílios fiscais mais favoráveis.
O segundo pilar é justamente a tentativa de
fazer as grandes multinacionais pagarem mais impostos onde fazem negócios, e
não apenas onde estão sediadas.
O problema de onde os empreendimentos pagam
impostos vem crescendo nas últimas décadas com a economia digital e
desmaterializada, que erodiu as bases nacionais de tributação.
As estimativas de arrecadação ainda não
estão claras, mas um estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) estima um aumento de 4%, equivalente a US$ 84 bilhões anuais,
a maior parte a ser paga por firmas americanas.
O acordo, aliás, só foi possível devido à
maior disposição dos Estados Unidos em permitir a taxação de suas gigantes de
tecnologia. A contrapartida exigida é o encerramento da tentativa de outros
países, como a França, de impor unilateralmente impostos digitais.
Também interessa aos EUA a taxa global
mínima, agora que a administração democrata quer aumentar sua própria cobrança
(dos atuais 21% para até 28%) para pagar pelos maiores gastos em infraestrutura
sem perder competitividade.
As novas regras ainda precisam ser
detalhadas e ainda não está claro quais empresas seriam atingidas. Também será
necessário incluir países em desenvolvimento, e o tema estará na pauta do
próximo encontro do G20, em julho. Depois, viria um longo processo de
ratificação nacional.
Mesmo com o potencial avanço, há críticas.
A principal é que o mínimo de 15% se mostra insuficiente e mal supera as taxas
das nações que mais se aproveitaram do sistema atual, como Irlanda, Holanda,
Singapura e paraísos fiscais. Outra é que os grande beneficiários da maior
coleta de dinheiro seriam os governos de países ricos.
Mas é inegável que as mudanças, se bem
regulamentadas, carregam potencial para prover maior justiça tributária em
âmbito global.
Delírios paralelos
Folha de S. Paulo
Gabinete montado para a pandemia não
buscava embate de ideias, mas mistificação
Tratando-se de um governo que dá
continuadas mostras de transitar por mundos paralelos, não chegam a causar
surpresa as evidências que se avolumam acerca da formação de um “gabinete de
sombras” para assessorar o presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia do
novo coronavírus.
O assim chamado gabinete paralelo, como se
sabe, ganhou projeção com os trabalhos da CPI do Senado. Depois de ocupar a
pauta de algumas sessões da comissão, o assunto amplificou-se após a divulgação
de um vídeo que registra a proposta de uma estrutura de assessoramento ao
governo.
A gravação mostra uma reunião de
profissionais da área de saúde, em setembro de 2020, na qual o virologista
Paolo Zanotto sugere a Bolsonaro a criação de um grupo
à sombra para debater estratégias de enfrentamento da Covid-19,
estratagema que pouparia os participantes do crivo da opinião pública.
A reunião é apenas uma peça de um conjunto
de indícios sobre a existência de uma rede bolsonarista de aconselhamento,
formada por especialistas com ideias peculiares sobre o que seria um
“tratamento precoce” da doença, com o uso de drogas sem eficácia demonstrada
—caso da cloroquina.
Na quinta-feira passada (3), a Folha trouxe à luz duas
lives realizadas no ano passado com a presença do ex-assessor da
Presidência Arthur Weintraub e do anestesista Luciano Dias Azevedo. Nas
conversas são expostos detalhes da concepção e funcionamento da estrutura de
assessoramento criada à margem do Ministério da Saúde.
Numa passagem, Azevedo diz que Weintraub
(irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub) foi quem conectou os médicos
do grupo, que municiavam Bolsonaro com ideias heterodoxas e fantasiosas sobre
como combater o vírus.
Nos diálogos, ambos demonstram pouca
preocupação com a falta de comprovação para as prescrições sugeridas e fazem
blague com o uso de máscaras protetoras.
Nada impede um governante de colher
opiniões de diferentes setores sobre assuntos relevantes para os destinos da
nação. Ao contrário, trata-se de boa prática.
No caso em tela, contudo, o que se tem não
passa de uma movimentação de marcante viés ideológico, com empenho em negar
recomendações hegemônicas no meio científico e oferecer a Bolsonaro um kit de
mistificações para alimentar suas convicções esdrúxulas sobre como gerir a
pandemia.
Acelerar vacinação salvará vidas e apoiará retomada
Valor Econômico
Que o presidente passe de fato a trabalhar
com afinco pelo fim da pandemia no Brasil
Em meio a um dos maiores “panelaços”
realizados contra o seu governo, o presidente Jair Bolsonaro prometeu que neste
ano “todos os brasileiros que assim o desejarem serão vacinados”. O discurso,
feito no seu pior momento em termos de popularidade, mostra alguma correção de
rota do mandatário da nação, pelo menos nesse tópico.
Colecionando uma trágica série de erros na
condução da pandemia, Bolsonaro passou de alguém que ironizava a imunização - e
rejeitava ofertas que poderiam ter salvado muitas vidas - para uma versão que
promete vacinar a todos. Apesar de muito atrasada, a mudança no discurso é
bem-vinda e deve gerar efeitos positivos para o combate ao vírus, ajudando a
reduzir mortes.
Mas precisa ser acompanhada de maior
comprometimento e efetividade no processo de vacinação, ainda muito aquém do
desejável. Números do consórcio de veículos de imprensa mostram que, em maio, a
média diária de imunização foi de 662 mil doses, caindo em relação às 821 mil
aplicações diárias no mês anterior e mais distante do número de um milhão de
doses diárias que chegou a ser mencionado como ritmo que prevaleceria a partir
de abril pelo próprio presidente.
O país sofre com as dificuldades geradas
pelos atritos criados por Bolsonaro com a China, que tem atrasado a entrega dos
ingredientes farmacêuticos ativos (IFA), com a dificuldade na produção nacional
desse tipo de produto e com a tardia chegada das vacinas da Pfizer, cuja demora
na aquisição é um dos mais graves erros desse governo.
O fato é que o Brasil precisa acelerar ao
máximo a vacinação. Cientistas apontam que o ritmo ideal seria ao menos 1,5
milhão de doses por dia, ou seja, temos que mais que dobrar a velocidade atual.
Para um país que já foi referência mundial em vacinação, a realidade é
dolorosa.
Em seu pronunciamento abafado pelo
“panelaço” da última quarta-feira o presidente voltou a levantar a falsa
dicotomia sobre a reação à pandemia e a economia. Destacou que não determinou
que as pessoas ficassem em casa, que comércios e serviços e fossem fechados. Mostrou
assim que, se passou a entender a importância da vacina, ainda não caiu em si
sobre o erro que cometeu ao sabotar as ações de governadores e prefeitos no
enfrentamento da pandemia.
A recuperação econômica do Brasil, que
cresceu 1,2% no primeiro trimestre e, pelas indicações do momento, deve
encerrar o ano com alta acima de 4%, é uma boa notícia e ele fez questão de
mencionar em sua fala. Mas ocorre em meio a um período trágico da nossa
história, com milhares de mortes evitáveis, baixa geração de empregos e em meio
a um mar de incertezas adiante. Obviamente, isso foi omitido por ele, que com
sua inépcia para gerenciar as ações e reações à pandemia, tem grande
responsabilidade nessa tragédia.
Com o atual ritmo de imunização, os riscos
de uma terceira onda da covid-19 no país já começam a dar sinais de
materialização. Como Bolsonaro, governadores e prefeitos vão reagir ainda é uma
incógnita. Não fosse a inépcia na condução da pandemia, a recuperação da
atividade econômica teria sido mais intensa e, principalmente, com melhor
qualidade, gerando mais empregos e contendo a tragédia que tem sido o aumento
da pobreza e desigualdade nessa pandemia. Países como Israel, Estados Unidos,
após a chegada de Joe Biden ao poder, e muitos da Europa estão aí para provar que
uma condução responsável traz frutos para a saúde e para o PIB.
Medidas de paralisação de atividades sem
sabotagem presidencial poderiam ter sido mais curtas e ao mesmo tempo mais
efetivas para reduzir as mortes, permitindo assim um custo menor e uma retomada
mais forte da economia. O setor de serviços, que, apesar de uma melhora nos
dois últimos trimestres, ainda é o que mais sofre com o vírus sem barreira
efetiva de contenção.
O mais grave é que o governo sabe disso.
Bolsonaro, teimosa e irresponsavelmente, bateu o pé e fixou sua trincheira do
lado errado da história. A mudança no discurso sobre a vacinação é importante,
porém insuficiente. É preciso que ele também fale sobre a necessidade de se
cuidar, usar máscara, manter o distanciamento entre as pessoas e dar exemplo de
responsabilidade, não promovendo, por exemplo, aglomerações.
Que o presidente entenda o recado das panelas e das manifestações que se espalham pelo país e passe de fato a trabalhar com afinco pelo fim da pandemia no Brasil. A vida e a economia agradecem.
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