O Globo
Bolsonaro prometeu colocar “o Brasil acima
de tudo”. Sob a emergência de saúde gerada pela pandemia, fragmentou a nação em
5.570 entidades municipais separadas. A implosão começou com as restrições
sanitárias e concluiu-se com a campanha de vacinação. Hoje, no país
estilhaçado, os direitos dos cidadãos são essencialmente regulados pela vontade
soberana dos prefeitos.
A bomba foi detonada pelo presidente, no
início da pandemia, quando ele classificou a Covid-19 como “uma gripezinha” e
recusou-se a coordenar o combate à difusão de contágios. Reagindo em defesa da
saúde pública, o STF decidiu por unanimidade reconhecer as prerrogativas
estaduais e municipais na aplicação de medidas de restrição sanitária.
O gesto inevitável dos juízes cristalizou o movimento centrífugo. Na ausência de um centro nacional, governadores e prefeitos passaram a adotar as mais disparatadas regras sanitárias. Legislaram à larga, determinando fechamentos e reaberturas das mais diversas atividades ao sabor de critérios arbitrários. Aqui e ali, prefeitos interromperam o tráfego em rodovias ou, atropelando direitos fundamentais, decretaram datas específicas para o deslocamento de residentes nas vias públicas.
Sob o manto da vaga decisão do tribunal
superior, praticamente cessou o controle judicial das competências legais dos
governantes. O Brasil de Bolsonaro — e do seu triste cortejo de militares
militantes — converteu-se em terra sem lei.
O melhor retrato da nação em estilhaços
encontra-se nas ruínas do Programa Nacional de Imunizações (PNI).
Institucionalizado em 1975, no rastro do sucesso das campanhas de vacinação
contra a varíola dos anos 1960, o PNI inaugurou a primeira Campanha Nacional de
Vacinação contra a Poliomielite em 1980 com a meta de imunizar todas as
crianças menores de 5 anos num único dia. Menos de uma década depois, em março
de 1989, identificou-se o caso derradeiro de pólio, na Paraíba. O programa,
fonte de orgulho nacional, não resistiu à anarquia bolsonarista.
Eduardo Pazuello, o indisciplinado general
da ativa que faz dublagem de agitador de comícios, plantou as cargas explosivas
no PNI. À frente do Ministério da Saúde, retardou ao máximo a aquisição de
vacinas e rabiscou simulacros ilusórios de planos de imunização, abandonando o
SUS na frente de batalha. O caos resultante estende-se até hoje.
A renúncia do Ministério da Saúde a
comandar um plano nacional de imunização reflete-se, antes de tudo, na
inexistência de campanhas de publicidade nos meios de comunicação de massa.
Nesse ponto, Marcelo Queiroga, o substituto de Pazuello, revela-se tão fiel a
Bolsonaro quanto seu fracassado antecessor. Para não desagradar ao presidente
antivacina, seu ministério foge à responsabilidade de levar à população as
informações básicas sobre os imunizantes, as regras de prioridade e os
cronogramas de vacinação.
A desordem ramifica-se nos níveis estadual
e municipal. Governadores e prefeitos acenaram a grupos de pressão e clientelas
eleitorais, fabricando grupos prioritários e, nesse passo, reduzindo o ritmo da
vacinação. Ao mesmo tempo, alteraram sem cessar os cronogramas, fornecendo
informações confusas e incompletas em sites mais ou menos ocultos. Nos 5.570
programas de imunização em curso na nação estilhaçada, registram-se diferenças
de até dez anos nos grupos etários autorizados a se vacinar e regras distintas
de intervalos entre doses.
De passagem, os gestores municipais cometem
crimes em série, confiando na cumplicidade passiva do Ministério Público.
Infringindo as regras institucionais do SUS, milhares de cidades fazem de
comprovantes de residência condição para vacinar. Por essa via, criam
precedentes para, no futuro, negar atendimento de saúde a residentes de outros
municípios. Há, ainda, os que, atraídos pelos holofotes das redes sociais,
cassam o direito à imunização dos “sommeliers da vacina” — ou seja, indivíduos
que, sem cometer ilegalidade alguma, perambulam de posto em posto à procura do
imunizante de sua preferência.
5.570 Brasis — eis o fruto maduro do
bolsonarismo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário