O Globo
À medida que o carro avança, os nomes dos
lugares me fascinam: Divinópolis, Doresópolis. Qualquer dia, paro para dar um
balanço desses nomes em Minas. Ou então para documentar as configurações e
nuances do céu. Hemingway descrevia certas nuvens como camadas de sorvete. No
crepúsculo em Minas, róseo e dourado, sinto como se o universo fosse uma capela
com o teto pintado pelo Mestre Ataíde.
Com um país tão interessante, não consigo
ainda explicar por que tanta confusão converge para sua capital, Brasília.
Essa história da vacina da Davati, por
exemplo, é um roteiro de chanchada. Um dirigente de empresa que recebe auxílio
emergencial e um cabo da PM que não consegue pagar o aluguel resolvem oferecer
400 milhões de inexistentes vacinas AstraZeneca.
Usam um reverendo para se aproximar do
governo. O reverendo é amigo de um homem que se diz super-homem. Sua entidade
religiosa falsifica logotipos da ONU, e ele se diz embaixador da paz. Ungido
por quem? Por outro reverendo, o famoso Moon. Sua grande missão diplomática foi
ir a Israel para unir judeus e árabes, tarefa que, como todos sabemos, alcançou
um perene êxito.
Às vezes, o enredo que passa pela CPI ganha um tom de pornochanchada com a contribuição do senador Heinze, que descobriu pesquisas contra a cloroquina financiadas por uma ex-atriz pornô chamada Mia Khalifa, que, agora, empolgada com sua inclusão no roteiro, quer visitar o Brasil para ajudar no combate à pandemia.
É tudo inacreditável, mas gira em torno de
um governo que manda uma comissão a Israel para monitorar um spray contra a
Covid-19, repleta de parlamentares que, certamente, levaram bomba nas aulas de
ciência.
Num desvario como este, o próprio Bolsonaro
se dedica agora a reproduzir, no âmbito tropical, a derrotada trajetória de
Donald Trump. Primeiro passo: questionar previamente as eleições. Segundo
passo, perdê-las e entupir a Justiça com recursos unanimemente rejeitados.
Terceiro passo: tentar o golpe invadindo o Capitólio e, finalmente, sobreviver
na planície como um presidente injustamente vencido pelas “fraudes eleitorais”.
Tudo isso poderia ser tão patético quanto o
plano do grupo que queria vender vacinas inexistentes. No entanto não é, porque
nem todas as forças que reagiram nos EUA podem ter a mesma ênfase no Brasil.
Nos EUA, as Forças Armadas se colocaram de forma inequívoca contra qualquer
tipo de golpe. As brasileiras não parecem tão enfáticas.
Não é impossível que Bolsonaro tente
realizar suas ameaças. O que parece realmente impossível é qualquer êxito, no
médio e longo prazos.
Teria de suprimir a internet com grandes
repercussões econômicas, sentiria o peso do isolamento internacional e a
rejeição de uma ampla maioria do povo.
Claro que Bolsonaro não se importa com
essas variáveis. Mas potenciais aliados deveriam contar com elas. Nos primeiros
dias, tocam o Hino Nacional, escrevem-se pequenas biografias dos vencedores
ocasionais, e o país se enche de árvores pintadas de branco e oportunistas com
bandeirinhas.
Mas o curso da história é terrível para
quem se aventura a negá-lo e reinaugurar a Idade das Trevas.
Por isso, é importante que a Justiça puna
ameaças, para dissuadir os impulsos golpistas de Bolsonaro. Mas tudo indica que
ele não se deterá até a fase três de seu delírio tropical. Nesse caso, será
preciso derrotá-lo de vez, profundamente.
Todos os lances de seu projeto autoritário
estão claramente delineados. O preço de considerá-lo apenas um fanfarrão seria
muito alto: ele estimulou a compra de armas, mobilizou-se para negar a pandemia
e apontou, cuidadosamente, inimigos para que não faltassem alvos para o ódio
acumulado.
Serão necessários muito cuidado e
habilidade, mas é ilusório supor que o país volte à calma sem neutralizar
Bolsonaro, assim como são risíveis as constantes promessas de que um dia,
finalmente, ele vai adotar a moderação.
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