segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Paulo Fábio Dantas Neto* - O teste de fogo do Judiciário e o apoio social requerido para vencê-lo

Quem aposta na incapacidade do Judiciário de se conduzir como Poder coeso e atento às suas prerrogativas institucionais está errando feio. Escaramuças frequentes na sua cúpula, o STF, em torno de temas atinentes, ou conexos, ao cotidiano político, faziam prosperar cogitações de que ela estivesse irremediavelmente atravessada por controvérsias a ponto de colocar em risco o cumprimento eficaz da sua missão de guardiã da Constituição. Temia-se, ademais, o efeito cascata dessa virtual dinâmica centrífuga derramando-se pelos demais tribunais superiores e para baixo, esgarçando o tecido institucional daquele Poder.

Na última semana, confirmando sinais da semana anterior, reiterados na abertura das atividades judiciárias após o recesso, passou a ficar claro que, se há contencioso crônico na cúpula do Judiciário, ele não se estende à pauta da defesa da democracia e da República. O risco de uma pane institucional no País, pela veiculação cada vez mais aberta e insolente, de ataques e deboches dirigidos a ministros do STF por parte do Chefe do Poder Executivo, associados a ameaçadas veladas e mesmo diretas às eleições de 2022, levou o colegiado a falar em uníssono, assumindo suas responsabilidades ante o momento crítico que se vive.

Há quem considere que a reação tardava, mas ninguém, exceto os politicamente engajados na referida cruzada desestabilizadora, tem dúvidas sobre a o acerto do recente pronunciamento do ministro Luís Fux, presidente do STF. Ele respalda e amplifica o alcance jurídico e político de providências tomadas pelo ministro Alexandre Moraes, relator, naquela Corte, do processo no qual Jair Bolsonaro foi incluído, como investigado, por indicação unânime do plenário do TSE. Essa indicação, por sua vez, já representava mais que incremento, um salto de qualidade na disposição da Justiça Eleitoral - desde sempre demonstrada pelo presidente daquela corte, ministro Luís Roberto Barroso -, de enfrentar a campanha de descrédito, movida contra ela, como parte de uma estratégia golpista de deslegitimação prévia dos resultados das eleições, as quais se desenham no horizonte como dique definitivo a ilhar pretensões autocráticas do presidente.

A convergência pública de posições, nesse terreno, entre ministros tão habitualmente afastados em pontos de vista, como Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes - que chegaram a protagonizar embates agressivos no plenário do STF sobre várias questões - é medida do amadurecimento de uma convicção sobre a prioridade lógica e política que a conservação da estabilidade institucional merece. Reconhece-se, nessa atitude coletiva, uma lógica análoga à que, no Congresso Nacional, alinha bancadas adversárias quando a instituição é ameaçada por outro Poder. Firma-se, assim, o STF, como autêntico poder republicano, não mera instância de legitimação/deslegitimação técnica de atos do poder político.

É preciso distinguir essa coesão institucional benigna daquele corporativismo, por vezes negativo, que costuma incidir sobre a conduta de membros de ambos os poderes. A propaganda da extrema-direita, refletindo interesse político do grupo que empalma e abastarda o Executivo, procura diluir a percepção da coesão institucional do Poder Judiciário de duas maneiras. A primeira é a fulanização de juízos sobre posições assumidas naquele ambiente, ao que parece, com três objetivos. Os ataques pessoais, perpetrados em termos chulos contra determinados ministros, visam popularizar o estigma de conspiradores e sabotadores da atuação do presidente eleito, ao tempo em que procuram (em vão, como se vê) – fomentar, artificialmente, uma cizânia permanente no tribunal e, por fim, blindar Bolsonaro contra as evidências de que afronta o Judiciário como um todo.  

A segunda maneira de tentar diluir a imagem de coesão do STF é distorcê-la, apresentando-a como expressão, ora de um corporativismo odioso aos olhos de uma sociedade desigual, ora de uma vontade ditatorial que, através de um regramento severo, dito exorbitante, do comportamento social dos cidadãos e da conduta dos agentes governamentais, estaria ameaçando a liberdade individual de uns e outros. Essa fabulação tenta equiparar, ou mesmo confundir, as éticas da vida privada e da vida pública, em desfavor dessa última. A legitimação do poder ilimitado de um autocrata, que se busca com tal narrativa, resultaria, caso fosse bem-sucedida, de uma apropriação distorcida do argumento liberal e mesmo do léxico democrático e da revogação prática da República, pela destruição de suas instituições.

O que foi dito não ignora, nem pretende ocultar (até porque seria esforço inútil) a presença de um corporativismo social e culturalmente nefasto entre as práticas correntes no âmbito do Judiciário, convivendo, dialeticamente, com o papel positivo desse Poder na garantia de avanços sociais e culturais. Também não ignora ou subestima o potencial de risco para a democracia contido numa hipotética ditadura de juízes. Sequer desconhece a presença, em diferentes estratos hierárquicos do Judiciário, de uma vontade de poder que, em certas circunstâncias, pode levar a flertes autocráticos também. Ainda está fresca em nossa memória a perversão da operação Lava-jato, que levou à sua maré vazante. Assim como não se deve esquecer a acolhida que algumas de suas práticas e até arbitrariedades factuais encontraram na malha judiciária do país e até no âmbito do STF. Longe estou, portanto, de uma ode à toga. Um ceticismo moderado é um anticorpo democrático.

Nada disso, no entanto, deve confundir o juízo político sobre a hora presente. O Judiciário coloca-se, objetivamente, hoje, como a mais eficaz instância de contenção das investidas autocráticas contra a ordem republicana e democrática no Brasil. Os direitos da cidadania, desde o mais elementar direito à vida ao mais relevante dos direitos políticos, que é o de eleger representantes, passando por direitos civis como às livres reunião, organização e expressão e pelos direitos sociais conquistados ao longo de décadas, todos eles nos faltarão em grau importante, senão fatal, se o Judiciário for vencido no presente embate contra as forças do obscurantismo, da violência e do atraso. Embate que esse Poder não escolheu, mas do qual, tendo lhe sido insistentemente imposto, não pode desertar, sob pena de faltar ao dever que justifica a sua própria existência como poder constituído.

Por essa razão não se pode alimentar ressalvas no apoio político e social ao que se está processando no TSE e no STF. E não é irrealista pensar que esse apoio tende a crescer a se materializar num fio resistente de consciência cívica que conecte, no âmbito do Estado, decisões de tribunais, manifestações em tribunas parlamentares, articulações partidárias, decisões legislativas, mobilização de entes federativos e de corporações e instituições estatais autônomas frente ao governo. E que superados os rigores da pandemia, com o avanço da vacinação, o encontro de tudo isso com a dinâmica, já hoje mais fluente, da sociedade civil em suas múltiplas faces, seja a da organização de classes e grupos sociais de extração popular, seja as dos movimentos civis temáticos, as das entidades cientificas, profissionais e religiosas que formam opinião, as empresariais, a imprensa e a mídia social.

Acostumemo-nos de novo ao hábito da conexão entre estado e sociedade, produzido pela representação política e pela organização social. O choque de realidade que a emergência política da extrema-direita nos trouxe está nos levando a esse reaprendizado. As cobranças para que os agentes do Estado - os políticos principalmente – escutem a sociedade precisam continuar e vão continuar, a perder de vista. É da própria índole dos regimes e das sociedades democráticas que assim seja.

Ao lado desse gerúndio, a hora requer chamados à responsabilidade política dos cidadãos para com a conservação das instituições do país. Hoje o Judiciário, em seu contra-ataque, precisa do apoio da sociedade e da política, no interesse delas próprias. Logo chegará a vez do Congresso, mais apropriadamente ainda, sendo, como é, a casa da representação política, ser convocado ao mesmo bom combate. Deve aceitar a convocação, como faz hoje o Judiciário e precisará do mesmo apoio social, para converter em ferramenta política. De aflições, desafios, ressalvas e respostas vivem, renovando-se, as repúblicas democráticas.

*Cientista político e professor da UFBa

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