Na última semana, confirmando sinais da semana anterior, reiterados na abertura das atividades judiciárias após o recesso, passou a ficar claro que, se há contencioso crônico na cúpula do Judiciário, ele não se estende à pauta da defesa da democracia e da República. O risco de uma pane institucional no País, pela veiculação cada vez mais aberta e insolente, de ataques e deboches dirigidos a ministros do STF por parte do Chefe do Poder Executivo, associados a ameaçadas veladas e mesmo diretas às eleições de 2022, levou o colegiado a falar em uníssono, assumindo suas responsabilidades ante o momento crítico que se vive.
Há quem considere que a reação tardava, mas
ninguém, exceto os politicamente engajados na referida cruzada desestabilizadora,
tem dúvidas sobre a o acerto do recente pronunciamento do ministro Luís Fux, presidente
do STF. Ele respalda e amplifica o alcance jurídico e político de providências tomadas
pelo ministro Alexandre Moraes, relator, naquela Corte, do processo no qual Jair
Bolsonaro foi incluído, como investigado, por indicação unânime do plenário do
TSE. Essa indicação, por sua vez, já representava mais que incremento, um salto
de qualidade na disposição da Justiça Eleitoral - desde sempre demonstrada pelo
presidente daquela corte, ministro Luís Roberto Barroso -, de enfrentar a campanha
de descrédito, movida contra ela, como parte de uma estratégia golpista de deslegitimação
prévia dos resultados das eleições, as quais se desenham no horizonte como dique
definitivo a ilhar pretensões autocráticas do presidente.
A convergência pública de posições, nesse
terreno, entre ministros tão habitualmente afastados em pontos de vista, como Luís
Roberto Barroso e Gilmar Mendes - que chegaram a protagonizar embates agressivos
no plenário do STF sobre várias questões - é medida do amadurecimento de uma convicção
sobre a prioridade lógica e política que a conservação da estabilidade institucional
merece. Reconhece-se, nessa atitude coletiva, uma lógica análoga à que, no Congresso
Nacional, alinha bancadas adversárias quando a instituição é ameaçada por outro
Poder. Firma-se, assim, o STF, como autêntico poder republicano, não mera instância
de legitimação/deslegitimação técnica de atos do poder político.
É preciso distinguir essa coesão institucional
benigna daquele corporativismo, por vezes negativo, que costuma incidir sobre a
conduta de membros de ambos os poderes. A propaganda da extrema-direita, refletindo
interesse político do grupo que empalma e abastarda o Executivo, procura diluir
a percepção da coesão institucional do Poder Judiciário de duas maneiras. A primeira
é a fulanização de juízos sobre posições assumidas naquele ambiente, ao que
parece, com três objetivos. Os ataques pessoais, perpetrados em termos chulos contra
determinados ministros, visam popularizar o estigma de conspiradores e sabotadores
da atuação do presidente eleito, ao tempo em que procuram (em vão, como se vê) –
fomentar, artificialmente, uma cizânia permanente no tribunal e, por fim, blindar
Bolsonaro contra as evidências de que afronta o Judiciário como um todo.
A segunda maneira de tentar diluir a imagem
de coesão do STF é distorcê-la, apresentando-a como expressão, ora de um
corporativismo odioso aos olhos de uma sociedade desigual, ora de uma vontade ditatorial
que, através de um regramento severo, dito exorbitante, do comportamento social
dos cidadãos e da conduta dos agentes governamentais, estaria ameaçando a liberdade
individual de uns e outros. Essa fabulação tenta equiparar, ou mesmo confundir,
as éticas da vida privada e da vida pública, em desfavor dessa última. A legitimação
do poder ilimitado de um autocrata, que se busca com tal narrativa, resultaria,
caso fosse bem-sucedida, de uma apropriação distorcida do argumento liberal e mesmo
do léxico democrático e da revogação prática da República, pela destruição de suas
instituições.
O que foi dito não ignora, nem pretende
ocultar (até porque seria esforço inútil) a presença de um corporativismo social
e culturalmente nefasto entre as práticas correntes no âmbito do Judiciário,
convivendo, dialeticamente, com o papel positivo desse Poder na garantia de avanços
sociais e culturais. Também não ignora ou subestima o potencial de risco para a
democracia contido numa hipotética ditadura de juízes. Sequer desconhece a presença,
em diferentes estratos hierárquicos do Judiciário, de uma vontade de poder que,
em certas circunstâncias, pode levar a flertes autocráticos também. Ainda está
fresca em nossa memória a perversão da operação Lava-jato, que levou à sua maré
vazante. Assim como não se deve esquecer a acolhida que algumas de suas práticas
e até arbitrariedades factuais encontraram na malha judiciária do país e até no
âmbito do STF. Longe estou, portanto, de uma ode à toga. Um ceticismo moderado
é um anticorpo democrático.
Nada disso, no entanto, deve confundir o juízo
político sobre a hora presente. O Judiciário coloca-se, objetivamente, hoje, como
a mais eficaz instância de contenção das investidas autocráticas contra a ordem
republicana e democrática no Brasil. Os direitos da cidadania, desde o mais elementar
direito à vida ao mais relevante dos direitos políticos, que é o de eleger representantes,
passando por direitos civis como às livres reunião, organização e expressão e pelos
direitos sociais conquistados ao longo de décadas, todos eles nos faltarão em
grau importante, senão fatal, se o Judiciário for vencido no presente embate contra
as forças do obscurantismo, da violência e do atraso. Embate que esse Poder não
escolheu, mas do qual, tendo lhe sido insistentemente imposto, não pode
desertar, sob pena de faltar ao dever que justifica a sua própria existência
como poder constituído.
Por essa razão não se pode alimentar ressalvas
no apoio político e social ao que se está processando no TSE e no STF. E não é irrealista
pensar que esse apoio tende a crescer a se materializar num fio resistente de
consciência cívica que conecte, no âmbito do Estado, decisões de tribunais, manifestações
em tribunas parlamentares, articulações partidárias, decisões legislativas, mobilização
de entes federativos e de corporações e instituições estatais autônomas frente
ao governo. E que superados os rigores da pandemia, com o avanço da vacinação,
o encontro de tudo isso com a dinâmica, já hoje mais fluente, da sociedade
civil em suas múltiplas faces, seja a da organização de classes e grupos sociais
de extração popular, seja as dos movimentos civis temáticos, as das entidades cientificas,
profissionais e religiosas que formam opinião, as empresariais, a imprensa e a mídia
social.
Acostumemo-nos de novo ao hábito da conexão
entre estado e sociedade, produzido pela representação política e pela organização
social. O choque de realidade que a emergência política da extrema-direita nos trouxe
está nos levando a esse reaprendizado. As cobranças para que os agentes do
Estado - os políticos principalmente – escutem a sociedade precisam continuar e
vão continuar, a perder de vista. É da própria índole dos regimes e das sociedades
democráticas que assim seja.
Ao lado desse gerúndio, a hora requer chamados
à responsabilidade política dos cidadãos para com a conservação das
instituições do país. Hoje o Judiciário, em seu contra-ataque, precisa do apoio
da sociedade e da política, no interesse delas próprias. Logo chegará a vez do
Congresso, mais apropriadamente ainda, sendo, como é, a casa da representação política,
ser convocado ao mesmo bom combate. Deve aceitar a convocação, como faz hoje o
Judiciário e precisará do mesmo apoio social, para converter em ferramenta política.
De aflições, desafios, ressalvas e respostas vivem, renovando-se, as repúblicas
democráticas.
*Cientista político e professor da UFBa
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