segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Ruy Castro - Hora sem festa para acabar

Folha de S. Paulo

Uma frase invertida sem querer pode ganhar novo sentido e, de repente, se provar mais eficaz

Tudo por uma frase, não? Em 1963, um antológico cartum de doze páginas, “A Verdadeira História do Paraíso”, custou a seu autor Millôr Fernandes sua demissão da revista O Cruzeiro. Millôr tinha 25 anos de casa e fora um dos responsáveis pelo estouro da revista nos anos 50. Mas, em 1963, O Cruzeiro, já perdendo longe para Manchete, estava decadente, inclusive pelo jornalismo quase marrom que alguns de seus grandes nomes praticavam. Ao limpar as gavetas e despedir-se, Millôr virou-se para eles e disse: “O navio abandona os ratos!”. O Cruzeiro não durou muito.

A frase invertida é um dos truques clássicos do humor, e Millôr foi dos que melhor a exploraram entre nós. Há dias, não por acaso, apropriei-me de outro de seus achados para definir o resultado das tentativas dos governistas, de blindar Jair Bolsonaro da acusação de assassinato em massa pela Covid. O máximo que estão conseguindo, escrevi, é deixar o rabo escondido com o gato de fora.

Mas o engraçado é quando as pessoas se confundem e fazem essa inversão sem querer, e mais ainda ao microfone. Talvez pelos tresnoites a que o fuso horário do Japão submeteu seus narradores e comentaristas, a transmissão da Olimpíada foi rica no gênero. E, magicamente, algumas dessas inversões fizeram sentido.

Um locutor, ao falar dos treinadores esbravejando contra os juízes de determinada competição, disse: “É natural que cada país queira puxar a sardinha para a sua brasa”. A princípio estranhei, mas logo pensei: “Por que não?”. De fato, faz mais sentido cada um com sua brasa individual, puxando a sardinha de um prato coletivo. E outro locutor, torcendo pela medalha de um atleta brasileiro, proclamou: “Vamos trincar os dedos!”. Achei perfeito —imagine se ele nos mandasse cruzar os dentes.

Mas a melhor foi quando, empolgado pela conquista de uma de nossas medalhas de ouro, outro bravo comentarista exultou: “A hora não tem festa para acabar!”.

 

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