Folha de S. Paulo
Movimentos no Brasil e no Afeganistão são
bastante diferentes, mas projeto de nação indissociável da fé em Deus os
conecta
Começou a temporada pré-eleitoral de
comparações descabidas do Brasil com outros lugares do mundo. Em 2018, o voto em
Fernando Haddad nos transformaria na Venezuela.
Agora, surfando a onda da trágica retomada
do Afeganistão pelo Talibã, as redes bolsonaristas foram inundadas de
comparações entre o Partido dos Trabalhadores e o grupo
fundamentalista afegão —“se Lula for eleito, ele desarmará o
povo, como estão fazendo lá!”, dizia a mensagem difundida, entre outros, pelo
deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
O mais irônico desses paralelismos é como
envelhecem mal. Nos últimos dois anos, a deterioração política do Brasil
—comandada por um populista e amparada pelas forças de segurança— é o que mais
nos aproxima da Venezuela. Nessa mesma linha, é possível dizer que,
se há alguma comparação possível entre Brasil e Afeganistão, ela passa pelo
bolsonarismo.
A essa altura, está claro que Bolsonaro
lidera um movimento reacionário, marcado por desrespeito às instituições
democráticas, sectarismo religioso e violência política. Em muitos sentidos, um
Talibã tropical. Obviamente, não são fenômenos comparáveis em termos de
beligerância, organização e modus operandi, até porque se orientam por
parâmetros civilizatórios e históricos muito distintos.
Mas há algo que os conecta em sua essência:
um projeto de nação indissociável da fé em Deus.
Guardadas as proporções, bolsonarismo e Talibã são expressões do fenômeno do nacionalismo religioso. Estamos falando de uma visão de sociedade que condiciona o pertencimento nacional não a critérios legais de cidadania, mas à filiação religiosa.
Trata-se de um fenômeno global que ganhou
força no pós-Guerra Fria, especialmente em regiões periféricas do mundo, onde a
disputa entre capitalismo e comunismo foi sendo suplantada por expressões
religiosas de afirmação nacional.
Nos últimos anos, a ideia de organização
política em torno do eixo religioso-civilizacional expandiu-se para além dos
grotões. A crise dos valores liberais do secularismo e do multiculturalismo
criou condições para a ascensão da
extrema direita, muitas vezes atrelada a uma cosmovisão
fundamentalista religiosa.
Governos de países tão distintos como
Estados Unidos, Hungria, Índia e Polônia passaram a defender a necessidade da
regeneração espiritual de suas sociedades, tornando a religião o principal
elemento de unidade nacional, em prejuízo a
valores como diversidade, pluralismo ou tolerância.
O risco evidente desse nacionalismo
antiliberal —seja de corte étnico, racial ou religioso— é a linha tênue entre a
solidariedade e o supremacismo. Ninguém pode negar a importância dos laços de
fé ou de sangue como fundamento da vida comunitária.
Ao mesmo tempo, tomar uma religião como
moralmente superior às demais, a ponto de pregar a assimilação forçada, a
segregação social ou até mesmo a eliminação literal de quem não pertence ao
grupo, está na raiz de incontáveis conflitos nos últimos séculos.
A tragédia afegã é reflexo da radicalização
desse nacionalismo religioso. Politicamente fragmentado em grupos
etnolinguísticos e estruturas tribais, o Afeganistão foi capaz de resistir às
invasões externas —primeiro britânicos, depois
soviéticos, agora americanos— usando a religião como cimento social.
Desse processo longevo nasce um tipo de fundamentalismo islâmico brutal, que sacrifica direitos e liberdades em nome da afirmação soberana. Aos olhos do Talibã, a derradeira prova de lealdade à nação afegã é a demonstração de fé, nos seus termos mais radicais.
A rigor, o bolsonarismo não nasceu como
movimento exclusivamente religioso, aglutinando diversos grupos antipetistas,
de saudosos da ditadura a apoiadores da Lava Jato, de armamentistas a liberais,
de ruralistas a cristãos de várias igrejas.
Aos poucos, contudo, os contornos
religiosos foram dando o tom da atuação política de Bolsonaro, desde as coisas
mais prosaicas, como cultos escondidos no Planalto e referências bíblicas em
discursos oficiais, à indicação de ministros por rateio denominacional.
São abundantes as evidências de que ao
menos parte do bolsonarismo é adepta a uma visão radical de nacionalismo
cristão. Para além do que diz o próprio presidente, há declarações de ministros
e aliados buscando condicionar
políticas públicas a preceitos religiosos, além de apoiadores que
enxergam o mandato de Bolsonaro como parte de uma guerra santa contra inimigos
genéricos como o comunismo, o globalismo e o marxismo cultural.
Expressão escancarada desse projeto
nacionalista religioso é o programa do
partido criado por Bolsonaro (e nunca oficializado), a Aliança
pelo Brasil, onde se lê o seguinte: “a relação entre esta Nação e Cristo é
intrínseca, fundante e inseparável”.
É a materialização de um discurso do
próprio presidente, ainda em 2017, em que bradou ser o Brasil um país cristão e
que as minorias “deveriam se curvar” às maiorias —ou desaparecer. A
evangelização forçosa de indígenas e a destruição de
terreiros de religiões afro-brasileiras é indício de que esse
plano, ainda que lentamente, já se encontra em marcha.
Não, caros leitores, o Brasil não se
tornará um Afeganistão. Bolsonaro sequer é o pio cristão imaginado por seus
idólatras. Por mais problemática que seja nossa democracia, penso que ela ainda
é capaz de nos resguardar de qualquer movimento que queira fazer do Brasil um
país de uma só fé.
Mas é necessário zelarmos pelos valores e
mecanismos democráticos que sustentam nossa sociedade. Destrui-los é o primeiro
passo para que o radicalismo sectário impere no futuro, num caminho
possivelmente irreversível.
*Cientista político e professor da FGV-EAESP
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