Correio Braziliense
O homo sapiens é
a mais surpreendente criação da natureza: capaz de inventar sapato e, 5.500
anos depois, deixar um bilhão de seus semelhantes descalços e outro bilhão se
endividando para comprar mais do que consegue calçar. Neste período, deixou de
jogar pedras com a mão e passou a fabricar bombas atômicas para jogá-las desde
foguetes, com a mesma ética belicista do passado. Sua técnica agrícola passou
da plantação manual no solo, para tratores robóticos e sementes manipuladas,
mas no lugar de distribuir para quem tem fome, prefere jogar fora a comida que
sobra do que podem comprar. Capaz de contar centenas de milhões de votos em
minutos, mas incapaz de tomar decisões que levem em conta os interesses de toda
a humanidade do futuro. A natureza criou um animal que evoluiu na lógica ao
ponto de manipular a natureza, mas demonstra ser incapaz de regular o uso de
sua força de maneira sustentável e decente: um animal com inteligência, mas sem
saber usá-la inteligentemente.
O escritor Arthur Koestler parece ter razão com a hipótese de que o homo sapiens foi resultado de um erro de mutação, ao adquirir um cérebro com lógica que evolui, mas com uma moral que não evolui: a lógica da bomba atômica, a ética da política tribal. O resultado é que, para aumentar a produção, a racionalidade técnica provocou o aquecimento global, mas deixou a ética e a politica despreparadas para evitar a catástrofe. Para acertar, a mutação deveria ter impedido o surgimento da inteligência ou dado responsabilidade moral.
Diferentemente
dos insetos, que sem consciência da morte se organizam para a sobrevivência da
espécie, o homo sapiens condena-se à extinção na busca de aumentar o tempo de
sua vida pessoal com o máximo de riqueza e consumo. A maior maravilha criada
pela natureza é uma espécie que marcha para o suicídio, ao usar o poder do
cérebro lógico a serviço do individualismo com voracidade de consumir e
ganância por lucro.
A natureza que
criou a inteligência é vítima dela, porque não é capaz de dominar sua própria
força. É como se a evolução das espécies tivesse fabricado um animal que age
com efeitos parecidos a um meteoro gigante vindo do espaço em direção à Terra.
Outros meteoros estão a caminho há milhões de anos, mas o meteoro sapiens tem
apenas 40.000 anos - menos 300, se levarmos em conta sua mutação para o homo
sapiens industrial.
A suspeita de que
o homo sapiens é suicida parece confirmada pelo relatório das Nações Unidas que
detalha as mudanças climáticas que aquecem o Planeta, com a consequente
desarticulação da agricultura, elevação no nível do mar, extinção de animais.
Apesar de que, há mais de 60 anos, a humanidade é alertada dos riscos, as
políticas nacional e internacional não conseguiram até aqui barrar as
catástrofes ecológicas e a desigualdade social em marcha.
As mudanças
climáticas mostram que voracidade de consumo, ganância de lucro, poder
tecnológico, consciência da morte e política individualista conspiram contra o
futuro da humanidade. Nada indica que o poder catastrófico em escala global
será controlado pelo voto que reflete os interesses individuais e imediatos do
eleitor, não do planeta e da humanidade. O homo sapiens, na sua forma
industrial, parece caminhar para seu próprio fim. Salvo se usar a biotecnologia
e a inteligência artificial para promover nova evolução que fabrique um
“neo-homo sapiens”, forte, inteligente e longevo, e deixe para trás bilhões de
“neo-neandertais”, debilitados física e mentalmente, dessemelhantes e passíveis
de extinção física, não apenas de exclusão social como atualmente. Se optar
pela catástrofe ecológica da extinção ou pela catástrofe moral da ruptura da
espécie, o atual homo sapiens e sua humanidade deixarão de existir. Koestler
teria tido razão: por um erro de fabricação, o homo sapiens é a única espécie
programada para o suicídio, afogado nos produtos de sua inteligência
irresponsável.
Felizmente, ainda
há esperança de que a inteligência pode despertar sua própria
irresponsabilidade moral, a falta de valores éticos comprometidos com a
sobrevivência da espécie: o uso de tecnologia a serviço de todos buscando um
desenvolvimento harmônico entre os seres humanos e deles com a natureza. Ainda
há esperança, mas a história das últimas décadas parece dar razão a Koestler e
justificar um réquiem ao homo sapiens.
*Professor
Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o futuro da Educação
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