Valor Econômico / Eu Fim de Semana
O Estado brasileiro entregou-se politicamente
à possessão diabólica das leis econômicas, e o preço do alimento emergencial dos
miseráveis e famintos subiu
No supermercado da fome, o dos restos e
resíduos de comestíveis, carne de pescoço de galinha, ossos de boi, espinhas de
peixe, comidas de desvalidos que, no noticiário, revelam o que é a inventiva
estratégia de sobrevivência dos milhões de famintos no Brasil. São componentes
da visibilidade turva da melancólica situação social brasileira.
Há uma certa hipocrisia política em
atribuir essa tragédia à pandemia. A pandemia apenas agravou o que já era
grave. Tampouco se trata de algo restrito à incompetência de um governo
irresponsável, embora lhe deva muitíssimo.
A coisa nos vem da imprudência de tentar
fazer de conta que o Brasil é um país emergente, quase de primeiro mundo, e
deixar a economia correr.
Os teóricos do capitalismo de
marginalização social “chutam”: basta copiar o modelo econômico dos países
ricos para que todos os problemas sociais sejam resolvidos automaticamente e
este também se torne rico. Mesmo que esteja se tornando cada vez mais pobre.
O Estado brasileiro entregou-se politicamente à possessão diabólica das leis econômicas. O preço da carne de pescoço, que se tornou alimento emergencial dos miseráveis e famintos, subiu. Ou seja, a fome e a economia dos pobres foram capturadas pela voracidade do lucro amoral e cego do sistema econômico socialmente insensível, de regras feitas unicamente para aumentar o muito dos que já têm tudo.
Os pobres são personagens invisíveis da
bolsa de valores e do mercado financeiro. Por incrível que pareça, são
lucrativos porque suas carências se traduzem em valorização do que não vale
nada. Deveriam dar um Prêmio Nobel de Economia a quem explicasse o fato de que
o preço da carne de pescoço, do cardápio dos pobres, baseado em itens
praticamente do lixo, também sobe quando o dólar sobe. O estômago do pobre fica
mais vazio enquanto bolsos ficam mais cheios.
É estranhíssimo que pobres e ricos não
enxerguem isso, não façam comparações, não as traduzam em consciência e ação
políticas em favor do bem comum. Entre os pobres, a fome e o abandono matam o
espírito ao privá-lo de seu alimento primordial que é a esperança.
A política não foi inventada para ser
cúmplice da economia nem do economismo. A política foi inventada para trazer a
economia e o poder ao redil da civilização, controlar e regular suas tendências
economicamente irracionais e socialmente destrutivas.
É a ordem social e seus valores que devem
regular a ordem econômica. Quando isso não acontece, e não está acontecendo, a
nação inteira se converte num país de párias, de sem destino, de famintos, de
desabrigados. A falta de coragem, de responsabilidade e de competência dos
políticos que podem acionar os mecanismos de correção da economia é indicativa
de que estamos abandonados e órfãos.
Todos se lembram, certamente, do espetáculo
de menoridade política que foi a reunião do governo de 22 de abril de 2020. E
nela da afirmação imponente do ministro da Economia contra suposta tendência
keynesiana nas propostas e ações de um dos ministros. Se tivéssemos um Keynes
no Brasil, e sua teoria de renda e do emprego, certamente o país estaria longe
da barbárie da situação atual. Livre do peso morto de gente que manda como
capataz dos tempos da escravidão.
Os jornais garimpam, todos os dias, nas
ruínas do país as novidades medonhas da miséria. Na esperança de que se
desenvolva entre nós a consciência crítica de nossos problemas, de nossa
vulnerabilidade social, do abismo que nos espera.
O cardápio de carne de pescoço se desdobra
na forma que vai adquirindo a situação habitacional. Análise de Fernando
Canzian na “Folha de S. Paulo” mostra que, em uma década, o número de favelas
saltou de 6.329 para 13.151.
Em 1960, Carolina Maria de Jesus, que vivia
na Favela do Canindé, lançou seu primeiro livro, “Quarto de Despejo”, graças ao
empenho do jornalista e escritor Audálio Dantas. Carolina era personagem de uma
humanidade invisível. Seu livro gritou por ela. Nele, São Paulo e o Brasil
ficaram nus.
Hoje 24,5 milhões de pessoas passam fome no
país. Não é fome de comer pouco. É fome de comer o insuficiente ou de não comer
nada. Outros 74 milhões estão chegando perto dessa situação. São cerca de 100
milhões de mãos e braços que, sem trabalho e na incerteza da marginalização
social, estão à espera de um novo corpo político e social chamado multidão.
Creio que seria muito mais prudente
mobilizar a população para fazer uma profunda e radical reforma econômica e
social, com gente capaz de fazê-la, com base no primado dos direitos sociais e
da dignidade da pessoa. O Brasil precisa revolucionar suas estruturas
fundamentais. Essa seria uma boa oportunidade para Deus aderir e confirmar que
é mesmo brasileiro.
*José de Souza Martins é sociólogo.
Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón
Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94).
Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, é autor de “Linchamentos - a justiça popular no Brasil”(Contexto).
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