Quatro
anos depois de a corrupção e a segurança pública dominarem o debate, a
inflação, o desemprego e a penúria mudam eixo do ano eleitoral, cuja contagem
regressiva já começou
Entre
julho e outubro deste ano, o número de mortos pela covid-19 caiu pela metade.
No mesmo período, a economia substituiu a saúde como o maior problema dos brasileiros.
Só a corrupção e a violência permanecem na mesma rabeira das preocupações. É
assim que começa a contagem regressiva dos 12 meses que separam o Brasil das
eleições de 2022. Nem a presença de Jair Bolsonaro aproxima esta disputa
daquela de 2018 porque seus passivos, desta vez, não têm como ser ignorados e
suas estratégias, em grande parte, já se tornaram conhecidas. O que não
significa que seja totalmente controláveis.
No ano da última eleição presidencial a inflação não fez cócegas. Fechou o ano com um índice equivalente a menos da metade do que deve ser registrado em 2022. O desemprego parecia alto, mas havia 1,6 milhão a mais de brasileiros ocupados naquele ano em relação ao que se registra hoje. Aqueles que conseguem se manter trabalhando ganham, em média, menos do que o faziam no ano em que foi eleito Jair Bolsonaro. A renda média do trabalho nas regiões metropolitanas chegou ao menor patamar dos últimos dez anos. Contribuiu para esta queda, principalmente, a redução no rendimento dos mais pobres.
O
arrefecimento da pandemia escancarou o pano de fundo que emerge da mudança de
canal aferida pela Genial/Quaest. Em quatro edições deu-se a virada na
percepção dos brasileiros. A pesquisa, encabeçada por professores
universitários - Felipe Nunes (UFMG) a dirige com a consultoria de Jairo
Nicolau (Uerj) -, é mensal, presencial e tem o patrocínio de um fundo de
investimentos. Contribuiu para a virada não apenas a curva declinante de
mortalidade na pandemia, como a arrancada da inflação e no número de desocupados.
Na
radiografia que fez sobre a ascensão de Bolsonaro em 2018, “O Brasil Dobrou à
Direita” (Zahar), Jairo Nicolau chamou atenção sobre a centralidade da
corrupção e da violência na pauta eleitoral em detrimento da economia. Na fria
leitura das pesquisas, aquela campanha parecia se desenrolar num país que havia
superado seus problemas de renda. Só que não.
Não
havia base real para uma disparada dos dois temas no ranking das preocupações.
O Brasil continuava no ritmo de uma Guerra do Vietnã por ano, mas naquele 2018
em que Bolsonaro se elegeu de arminha na mão a violência arrefecera. Ao fim do
ano se registraria a maior queda em 11 anos no número de homicídios (Fórum
Brasileiro de Segurança Pública).
Na
corrupção, é bem verdade que se vivia o governo Michel Temer, que sufocou dois
impeachments, do subsolo do Palácio da Alvorada, graças ao Centrão. O eleitor
não imaginava que se tratava apenas de um ensaio para a posse do bloco no poder
ao longo do governo de Jair Bolsonaro.
Se,
como diz Nicolau, a centralidade de ambos os temas era artificial na campanha
de 2018, também parece fazer pouco sentido que hoje tenha sido jogada para
escanteio. E foi. A despeito da mansão do filho do presidente ao vivo e em
cores nos melhores telejornais da praça ou de parlamentares executando o
Orçamento no escaninho das planilhas secretas, a corrupção só consegue
emocionar 10% dos brasileiros.
Parece
igualmente inexplicável que num momento de ascensão dos homicídios, depois de
dois anos de queda, a violência apareça como uma preocupação ainda mais
marginal. A pandemia fez crescer os feminicídios, as brigas de vizinhos e as
brigas de facções do tráfico, mas a violência hoje é a preocupação de 2% dos
brasileiros, patamar irrisório quando se compara com os de 2018. Naquele ano,
em dados de Jair Nicolau, refinados a partir da pesquisa do Latin American
Public Opinion Project, a segurança liderava as preocupações, sendo citada por
18% dos eleitores como o maior dos problemas do país.
Mas
não havia disparidades entre as preocupações como acontece hoje, quando
segurança e corrupção são temas laterais. Quem acabou por projetar o binômio
segurança-corrupção como os maiores problemas do país naquele ano foi o
candidato que acabaria por vencer a eleição. E Bolsonaro o fez, em grande
parte, porque apostou naquele binômio para azeitar o antipetismo como motor
daquela disputa.
Se
foi capaz de fazê-lo em 2018, quando disputou contra Fernando Haddad, parece
improvável que volte a ser bem-sucedido com a mesma estratégia no próximo ano.
Primeiro, porque o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava preso naquela
eleição e agora é o candidato. Depois, porque uma parte do eleitorado está
convencida de que o processo que condenou Lula estava eivado de
irregularidades.
A
desidratação do ex-juiz Sérgio Moro nas pesquisas de intenção de voto é um
indicador do arrefecimento do tema da corrupção, embora os dez pontos percentuais
com os quais tem pontuado garantam sua competitividade no mar de nanicos em que
se encontra a terceira via até aqui. De todos, Moro é aquele que mais tem
potencial de crescer comendo o bolsonarismo pelas beiradas.
A
razão mais definitiva para a mudança de canal no debate eleitoral, porém, é a
penúria. No quarto trimestre de 2018, a média do rendimento do trabalho dos
mais pobres era de R$ 242 nas regiões metropolitanas do país, reserva eleitoral
de Bolsonaro. No segundo trimestre de 2021 esta renda caiu para R$ 177 (boletim
desigualdade nas metrópoles/IBGE).
Por
mais que o presidente consiga abrir outro rombo no teto de gastos para turbinar
o Bolsa Família, permanecem as dúvidas se a recuperação será suficiente para
tirar a economia do foco. O Boletim Focus, do Banco Central, projeta uma queda
na inflação, em 2022, pela metade, em grande parte por conta da elevação dos
juros que limitará a taxa de ocupação a uma modesta recuperação.
É
esta a expectativa do PT para contrastar o desempenho da economia sob Bolsonaro
com aquela dos oito anos de Lula. O relatório da Quaest de outubro corrobora,
em grande parte, esta expectativa. O quesito “controlar a economia” é aquele em
que Lula mais se distancia de Bolsonaro - 44% dos entrevistados apostam no
candidato do PT para a tarefa, enquanto apenas 18% o fazem com Bolsonaro. A
distância entre um e outro é mais de seis vezes maior do que aquela que aparece
entre um e outro na capacidade de “combater a corrupção”: 28% (Lula) x 24%
(Bolsonaro).
Nicolau
não compra a tese de que será uma eleição polarizada nem que se trate do
terceiro turno de 2018. Ao longo de quatro edições da pesquisa, a pergunta
“quem você prefere que vença” captou de 25% a 31% das preferências para a
resposta “nem um nem outro”, sempre acima das intenções de voto no atual
presidente da República.
O
dado torna-se ainda mais relevante quando se sabe que mais da metade do
eleitorado ainda não decidiu em quem vai votar. Como o presidente, em outras
pesquisas de opinião, como a do Datafolha, se aproxima do patamar dos 60% de
rejeição, é improvável que seja o depositário da maioria dos votos desses
indecisos. Ainda que seja reversível, a manutenção desse patamar de rejeição
até a véspera de um segundo turno pode inviabilizá-lo. E a matemática é
simples. A sobra de aprovação não compõe a maioria dos votos.
A
insistência de Bolsonaro, ao longo de toda a pandemia, no discurso contrário ao
isolamento social e ao fechamento do comércio, sugere, porém, que o presidente
tenta introduzir, em 2022, uma variável completamente ausente das eleições
passadas e da qual ele se acha credor: a liberdade de ir e vir.
Na
incerteza sobre a recuperação econômica e frente à dificuldade de se
ressuscitar a corrupção e a segurança como discurso competitivo, o presidente
busca no mote empatia com aqueles que perderam seu emprego ou viram a falência
de seus negócios. Como seu governo foi incapaz de minorar essas perdas, achou
por bem eleger o intervencionismo do Estado como o culpado da história.
Não
se trata de uma originalidade bolsonarista ou de uma feição marcadamente
conservadora do eleitor. Os republicanos nos Estados Unidos têm se insurgido
contra o governo Joe Biden, na recusa à vacina, por exemplo, como uma posição
de fé contra o Estado interventor. Eleitores de esquerda, na França e no Reino
Unido, se insurgiram contra a política de combate à pandemia de Emmanuel Macron
e Boris Johnson porque também não reconheciam nesses governos a legitimidade de
decisões tão definitivas sobre sua liberdade.
No
Brasil, Bolsonaro customizou o discurso. Vale-se dele para continuar a falar do
seu governo na terceira pessoa. Ele está sempre na oposição, a si mesmo se
preciso for. Busca incutir no eleitor a expectativa de que tudo poderia ter
sido diferente se ele tivesse tido a oportunidade de governar, ofício do qual
se dirá impedido pelo Supremo Tribunal Federal, governadores, prefeitos,
Organização Mundial da Saúde, CPI e até pelo Tribunal de Haia.
Não
deixa de ser uma nova tentativa de ressuscitar a pauta de costumes. Para
emplacá-la, não precisa convencer a maioria. Basta recuperar o eleitorado
flutuante dos centros urbanos - 12 milhões no cálculo de Jairo Nicolau - que
Bolsonaro tirou do PT em 2018 para perdê-los hoje para Lula.
Passando para o segundo turno, iria para o tudo ou nada com o motor do antipetismo retificado. É um cenário possível, ainda que não pareça provável. Ao contrário de 2018, não enfrentaria mais a fama de mau e de boquirroto, mas a ficha corrida de seus feitos.
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