Folha de S. Paulo
Se alguém sabe como responder agora, e não
depois, às urgências da miséria sem furar o teto, que nos diga já!
Sou favorável ao teto
de gastos. Se ele for possível. Alinho-me com todas as "ideias magras
e severas", para empregar a expressão de um dos meus prediletos, desde que
sejam ética e moralmente aceitáveis e resolvam problemas. Se, ao contrário, a
solução se torna causa de novos sortilégios, busque-se outro caminho.
Maquiavel nunca escreveu que "os fins
justificam os meios". Mas dá para entender por que se faz tal confusão. No
capítulo 18 de "O Príncipe", diz que o governante sábio não tem de se
manter fiel às suas promessas quando já se extinguiu a causa que o levou a
fazê-las.
Transcrevo um trecho: "Busque, pois, um príncipe triunfar das dificuldades e manter o Estado, que os meios para isso nunca deixarão de ser julgados honrosos, e todos os aplaudirão. Na verdade, o vulgo sempre se deixa seduzir pelas aparências e pelos resultados".
Dá para verter as palavras acima para o
mandarim político e pragmático de Deng Xiaoping, que resultou na China-potência:
"Não importa se o gato é preto ou branco, contanto que pegue ratos".
É minha divisa pessoal? Não. Penso que os meios qualificam os fins. Mas não sou
político.
Acho o teto de gastos uma boa ideia desde
que esteja atrelado a outros propósitos. Mas tenho chamado a atenção há tempos,
e não sou o único, para o fato de que, na prática, se tornou mais um fetiche,
uma fantasia, do que propriamente realidade. Permito-me pensar a questão,
esquecendo, por um breve hiato, a estupidez
de Bolsonaro e as fanfarronices de Paulo Guedes.
Se alguém tem alguma fórmula, sem furar o
tal teto, que responda agora, e não depois — e ainda que precariamente —, às
urgências da miséria
e da fome, que, então, nos diga. Queremos saber. Estivesse quem estivesse
no poder, dada a realidade, eu escreveria, como escrevo: "Extinguiu-se a
causa que levou à promessa de manutenção do teto de gastos". Olhem, por
exemplo, a devastação provocada pela Covid-19 nos estratos mais vulneráveis da
sociedade.
A minha crítica ao presidente e a seu
prestidigitador da Economia, no caso, não coincide com a dos ainda
bolsonaristas, ora ressabiados, ou com a dos que desembarcaram da nau dos
insensatos. Ainda que o indecoroso "orçamento secreto" seja rapado,
inexistem recursos disponíveis para minorar os efeitos da miséria alastrante.
O que me incomoda, aí sim, é o fato de o
governo não falar com clareza e de insistir em malabarismos de contabilidade
criativa. A PEC
dos precatórios, note-se, é o quê? Concentra calote, pedalada e fura-teto.
Tivesse Guedes o que oferecer e estivesse o rompimento da palavra empenhada do
"Príncipe" atrelado a um plano, a especulação certamente seria menor.
Ocorre que o limite de gastos, que foi para o beleléu, era a única brocha na
qual se pendurava o governo.
É evidente que o ogro está pouco se lixando
para o sofrimento dos pobres. Empenha-se na criação do "Auxílio
Reeleitoral", de que faz parte também o anunciado
benefício aos caminhoneiros. Nem ele nem Guedes se ocupam mais da
economicidade das decisões. Pela reeleição, que o país vá à breca. As decisões
destrambelhadas fazem despencar a Bolsa, levam à disparada do dólar e
contribuem para elevar a inflação, que corrói o poder de compra de todos, muito
especialmente de quem vai receber o auxílio.
E, claro!, não se deve esperar de Lula,
hoje pré-candidato favorito à disputa do ano que vem, que critique os R$ 400.
Ele pede R$ 600. Afinal, essa turma que aí está foi incensada por muitos
dos ora críticos do fura-teto como alternativa ao suposto "Risco PT".
Aí grita o colunismo da Terceira Via: "É uma disputa de populismos".
Pergunto: como incluir os miseráveis na equação —e já— sem que populismo não
pareça? Alguém fará campanha eleitoral na contramão do Auxílio Brasil ou em
favor da redução do valor?
O problema não está em furar o teto, que já
foi arrombado faz tempo, mas na falta de eixo da política econômica. Eixo,
note-se, que nunca teve. Durante um tempo, a parolagem de Guedes, tentando dar
sentido aos anacolutos de Bolsonaro, levou muita gente no bico. Nunca souberam
o que fazer. Era uma casa muito engraçada, só com teto e mais nada. Acabou o
teto. E agora?
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