O Globo / Folha de S. Paulo
Trabalhar que é bom, nada
O capitão não quer que se trate o 31 de
março de 1964 como golpe militar. Prefere falar em revolução. O senador Paulo
Paim (PT-RS) quer colocar o nome do marinheiro João Cândido no Livro de Heróis
e Heroínas da Pátria pelo seu papel na Revolta da Chibata, de 1910, mas os
comandantes da Marinha objetam. Argumentam que nada justifica uma insurreição.
Os intolerantes de 2021 militam em conflitos do passado, expondo a má qualidade do debate em torno da bela História do Brasil. Até aí, tudo não passaria de um exercício de autoritarismo em torno da memória, mas vai-se aos fatos e se vê que, só na semana passada, a Secretaria de Cultura anunciou a criação de uma linha de crédito de R$ 600 milhões para as comemorações do Bicentenário da Independência. Desde julho, o cineasta Josias Teófilo vinha reclamando dessa inação. Afinal, sabia-se há 199 anos que, no dia 7 de setembro do ano que vem, o Brasil comemoraria seus dois séculos de existência.
Quem quiser chamar o 31 de março de 1964 de
golpe, que chame. Quem quiser homenagear João Cândido, que o homenageie. A
objeção dos comandantes da Marinha pode ser legítima, mas falta explicar por
que se deu o nome do almirante Saldanha da Gama ao lindo navio-escola da Força.
Saldanha insurgiu-se contra o governo de Floriano Peixoto, aderiu à Revolta
Federalista do Rio Grande do Sul e foi degolado num combate, em 1895. Se os
almirantes não tivessem se rebelado contra Floriano, talvez ele não tivesse
convocado eleições. Se os marujos de João Cândido não tivessem se rebelado, a
chibata não teria sido abolida em 1910.
O Brasil já viveu tempos de tolerância. Em
1860, quando Dom Pedro II viajava pelo Nordeste, os fofoqueiros do Paço
contaram-lhe que o almirante Marques Lisboa, comandante do barco que o
conduzia, descera na localidade de Tamandaré para visitar o túmulo de seu irmão
que morrera combatendo o governo de Pedro I. Pior, queria transladar seus
restos para o Rio. O imperador tratou do caso e decidiu dar-lhe o título de
barão de Tamandaré. Vinte e nove anos depois, quando um golpe militar destronou
e desterrou Dom Pedro II, o então marquês de Tamandaré, que ficara no Paço
durante todo o dia 15 de novembro, ajudou a claudicante imperatriz a embarcar.
O que diferencia a intolerância de hoje das
outras, passadas, é a laborfobia. O radical quer radicalizar, mas trabalhar que
é bom, nada. O Bicentenário vem aí e, pelo que se vê, o governo nada fez. Em
1922, o presidente Epitácio Pessoa celebrou a data com muitas iniciativas,
inclusive uma exposição internacional. Em 1972, o general Emílio Médici
patrocinou uma patriotada com os restos de Dom Pedro I, mas tomou algumas
iniciativas culturalmente relevantes. Agora, de Brasília, só vem silêncio.
Pena, porque o governador João Doria há tempo prepara a reinauguração, em grande estilo, do Museu do Ipiranga. Em setembro de 2022, em plena campanha eleitoral, Doria terá o que mostrar, e Brasília ficará chupando o dedo, repetindo que em 31 de março de 1964 houve uma revolução. Ela cassou o mandato de deputado do pai do governador, que havia batalhado na CPI com seu colega Rubens Paiva, que investigava a corrupção eleitoral do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, cujo guru deixou o Brasil e morreu muito tempo depois, nos Estados Unidos. Rubens Paiva foi assassinado no DOI do Rio de Janeiro.
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