Correio Braziliense
Disputa entre tucanos, nas
prévias tumultuadas do PSDB, parece reproduzir a crise dos partidos da República
Velha
Impactado pela vitória do MDB em 1974, o
presidente Ernesto Geisel iniciou a grande manobra de retirada dos militares da
cena política com a chamada “distensão lenta e gradual”. O partido de oposição
à Arena (governista) conseguira expressiva vitória nas eleições gerais de
novembro daquele ano, conquistando 59% dos votos para o Senado, 48% da Câmara
dos Deputados, além da maioria das prefeituras das grandes cidades. A sociedade
se mobilizava geral: operários, estudantes, artistas, classe média,
empresários, profissionais liberais.
Houve uma explosão cultural. O teatro, o
cinema, a televisão e a música popular faziam a crônica da mudança de costumes
e protagonizavam os gritos de liberdade. É nesse ambiente, em 1976, que o
sambista Candeia compôs um dos mais belos sambas de sua geração, gravado
inicialmente por Cartola, naquele mesmo ano, mas cujo estrondoso sucesso viria
mais tarde, na voz de Marisa Monte, em 1989, que não chegou a conhecer. Candeia
morreu muito jovem, aos 43 anos, dois anos depois de sua composição.
Antônio Candeia Filho fora um policial truculento, que ficara paraplégico, após levar cinco tiros de um motorista numa batida policial. A limitação física, inimaginável para um capoeirista, levou-o à profunda depressão. Foi salvo, espiritualmente, pelo candomblé. E pelas rodas de samba da Portela, nas quais se destacou como líder da oposição ao “bicheiro” Carlinhos Maracanã. Dissidente, com Paulinho da Viola e outras bambas, criaria a legendária Quilombo. Seu álbum Axé é um manifesto de negritude, contra o racismo estrutural.
Preciso me encontrar, composta por
Candeia a pedido do jornalista e escritor Juarez Barroso, falecido naquele
mesmo de 1976, não me sai da cabeça desde domingo, por causa da confusão das
prévias do PSDB, nas quais os governadores João Doria, de São Paulo, e Eduardo
Leite, do Rio Grande do Sul, protagonizam uma intensa guerra interna,
coadjuvados pelo ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio Neto, que nunca foi tão
moderado.
“Deixe-me
ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar/ Se alguém por mim
perguntar/ Diga que eu só vou voltar/ Depois que me encontrar/ Quero assistir
ao sol nascer/ Ver as águas dos rios correr/ Ouvir os pássaros cantar/ Eu quero
nascer/ Quero viver”, diz a letra do samba antológico. É a síntese
do drama tucano, que registra uma disputa entre lideranças paulistas e gaúchas,
incendiada pelos mineiros, que parece reproduzir a crise dos partidos
republicanos da República Velha, tamanha a radicalização e a dificuldade de
entendimento entre seus protagonistas.
Prévias do barulho
O que poderia ter sido uma inédita demonstração de democracia interna e
construção de consensos, com escolha de uma candidatura em bases democráticas,
virou um furdunço, no sentido pejorativo do termo. Não vai ser fácil encontrar
uma saída pactuada, depois do colapso de domingo no sistema de votação por
aplicativo para os filiados da legenda, com direito a 25% do colégio eleitoral.
Qualquer resultado, se não houver boa
vontade do perdedor, pode ser deslegitimado e fragilizará o candidato à
Presidência da República escolhido pela legenda. Parece que Doria está levando
a melhor e tem um acordo de bastidor com Virgílio; Leite, denunciando jogo
bruto, dá sinais de que está para tomar o seu rumo, como na bela canção de Candeia.
O PSDB nasceu de uma costela do MDB, quando
o falecido governador paulista Orestes Quércia se assenhorou da legenda,
durante o governo do presidente José Sarney. Tornou-se nacional quando Fernando
Henrique Cardoso, ex-ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, venceu as
eleições de 1994, na onda do sucesso do Plano Real. Até então, era forte em São
Paulo, em Minas, no Paraná e no Ceará; residual no Rio de Janeiro, na Bahia, no
Rio Grande do Sul e no Pará.
Eleito, FHC conteve o crescimento do partido,
por causa de sua aliança com o PFL. Na sua sucessão, isso teve um preço. Além
disso, José Serra fez uma campanha descolada do governo que o apoiava e ainda
foi cristianizado em Minas. Desde então, a hegemonia dos políticos paulistas na
legenda sempre teve um custo para as suas alianças no plano nacional, por causa
das disputas regionais.
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