O Estado de S. Paulo
Abandono da instrução básica e prioridade para ensino superior são práticas de exclusão no reino dos desiguais
Educação não é privilégio é o título da obra mais importante do fundador do conceito de escola pública em tempo integral no Brasil, o baiano de Caetité Anísio Teixeira, que, não por homenagem vazia, mas por mérito incontestável, completa o nome do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Ou seja, a repartição pública que administra o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no centro das atenções no momento. Aliás, Enem e Inep são os dois piores exemplos de como a teoria no nome é invertida: entre os privilégios de classe e de casta no País destaca-se o elitista vezo histórico, oposto à intenção benemérita do formulador dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), no Rio, e dos Centros Educacionais Unificados (Ceus), em São Paulo.
Não se trata de imposição da direita ou da
esquerda, mas de uma tradição arraigada, que deforma todas as tentativas de
corrigir seu rumo. Inspirada em Ruth Cardoso, mulher do então presidente da
República Fernando Henrique Cardoso, a pesquisadora de políticas públicas Ana
Fonseca criou o programa de Renda Mínima na gestão do tucano José Roberto
Magalhães Teixeira, o Grama, em Campinas. À época, o ex-reitor da Universidade
de Brasília (UNB) Cristovam Buarque implantou no governo do Distrito Federal o
programa Bolsa Escola. A denominação condicionava o desembolso de dinheiro
público ao incentivo para lares pobres matricularem a prole. No primeiro
governo Lula, do qual Buarque foi ministro da Educação, a ideia original
alterou o enfoque educativo para assistencialista com o Bolsa Família, que
manteve, mas não priorizou, a necessidade da matrícula para o recebimento do
dinheiro. O desgoverno Bolsonaro deixou o programa social finar por inanição e
promete substituí-lo por outro, assumido como apenas assistencialista, o tal
Auxílio Brasil.
Essa inversão da prioridade educacional
para a assistencial direciona, evidentemente, o objetivo social para o
político, assumindo a mendicância militante. Seja à esquerda, seja à direita,
como sequência natural dos antigos programas paternalistas das obras contra as
secas e condicionando a emergência à compra indireta dos votos num populismo
contra o povo, como o pratica o atual desgoverno. A história contemporânea
produziu a adulteração da denominação dos planos de incentivo à educação básica
em muletas sociais para a distância abissal entre as migalhas para a instrução
pública inicial e o dispêndio insustentável no nível superior. O exemplo de
Inep/enem é de uma clareza absoluta. Criado para avaliar e, em seguida,
qualificar o ensino médio, que seria a prioridade evidente de qualquer gestor
público bem intencionado, é usado como via de acesso para instituições
superiores, substituindo o método tradicional do vestibular. A perenidade dos
privilégios de classe e casta é óbvia, cega, muda e surda.
A pretexto de extinguir o inexistente risco
da ditadura comunista, o golpe militar de 1964 paralisou as instituições
democráticas por 20 anos, mas perdeu, por evidentes limitações intelectuais, a
guerra pelo controle ideológico dos câmpus. Quando o regime ruiu sobre os
próprios pés de barro, o domínio intelectual do marxismo-leninismo mostrou seu
fascínio de corações e mentes e exibiu sua adesão ao elitismo dominante das
origens de classe de seus devotos e prosélitos. O Inep deixou de honrar o nome
do pedagogo que o batizara. E o Enem sobreviveu à invasão solitária do policial
federal na elaboração secreta da prova. Como a intelligentsia socialista
manteve as superstições de cátedras intactas após a invasão do câmpus da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo pelos meganhas comandados pelo coronel
reformado do Exército Erasmo Dias, em 1977.
Marx, o papa do “socialismo científico”,
não compareceu na prova a que o menor número de inscritos desde 2005 foi
submetido. Mas seu arrimo de família e sócio minoritário, Friedrich Engels,
manteve acesa a luta de classes num quesito esquisito retirado de sua
insignificante obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Esse
texto, obsoleto há 176 anos, desde a publicação, desmoraliza os autores da
prova, que podiam ter tratado do desemprego do operariado brasileiro a olho nu
na calçada de casa. E também os fracassados interventores Jair Bolsonaro,
Milton Ribeiro e Danilo Dupas, vítimas da própria ignorância. Eles na certa
conhecem Chico Buarque e Henfil, mas dificilmente terão lido Admirável Mundo
Novo, do britânico Aldous Huxley, parodiado em canção pelo sertanejo Zé
Ramalho, sucesso na trilha sonora de O Rei do Gado, telenovela de Benedito Ruy
Barbosa. Dificilmente terão compreendido que o título da canção, que troca
mundo por gado, ironiza a alcunha pejorativa de fanáticos bolsonaristas.
Neste momento em que crianças desmaiam de fome nas classes, desafiando sua exclusão da instrução pela desnutrição, a esquerda resistente e a direita demolidora associam-se na manutenção desumana do elitismo impiedoso que expulsa os pobres da escola e a pandemia do exame escolar. São cúmplices da inanição letal e da repartição da ignorância, único bem repartido na república dos desiguais.
*Jornalista, poeta e escritor
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