O Globo
No final de sua viagem à Europa, Lula deu
entrevista ao jornal espanhol El País e foi questionado sobre o governo de
Daniel Ortega na Nicarágua e sobre os protestos em Cuba. Suas respostas talvez
evasivas, talvez condescendentes com o autoritarismo de esquerda provocaram
amplo debate. Afinal de contas, por que Lula e o PT não conseguem condenar com
clareza o autoritarismo na Nicarágua, na Venezuela e em Cuba?
Cuba é uma ditadura de partido único, sem liberdade de reunião e sem liberdade de organização sindical. O governo da Venezuela subordinou o Legislativo e o Judiciário, acabando com a separação entre os Poderes, redesenhou distritos eleitorais para dificultar a eleição de opositores, perseguiu veículos de imprensa, torturou e assassinou dissidentes. O governo nicaraguense prendeu os candidatos da oposição para poder ganhar as eleições, prendeu arbitrariamente centenas de outros dissidentes e suspendeu a operação de ONGs. Todos esses abusos antidemocráticos estão amplamente documentados nos relatórios das organizações de direitos humanos.
Nos 13 anos em que esteve no poder, o PT
não deu muitos sinais de que queria esse tipo de autoritarismo no Brasil. Os
críticos do petismo podem dizer que foi apenas falta de oportunidade, mas,
agora que conhecemos o governo Bolsonaro, sabemos o tamanho do estrago que um
governo realmente orientado ao autoritarismo é capaz de fazer.
O bolsonarismo atacou sem trégua a
imprensa, o STF e o Congresso e incitou os militares a promover uma intervenção
“constitucional”; além disso, submeteu a um duro controle político a PGR, a
Polícia Federal e os órgãos ambientais, destruindo sua autonomia institucional.
Perto disso, as críticas dos petistas à imprensa (“Partido da Imprensa
Golpista”), a perseguição a Larry Rohter, correspondente do New York Times, e
mesmo a tentativa de aprovar a PEC 33, que diminuía o poder do STF, parecem
pouco importantes.
Se o tipo de governo de esquerda dos
petistas é assim tão diferente do que vemos em Cuba, na Venezuela ou na
Nicarágua, por que Lula e seu partido não condenam sem meias palavras esses
regimes para afastar qualquer tipo de suspeita de que, se tiverem a
oportunidade, podem colocar a democracia brasileira em risco?
A primeira explicação é que o petismo
abriga setores autoritários que acreditam que a democracia burguesa não é fundamental
e pode —ou deve — ser descartada para enfrentar o inimigo imperialista ou de
classe. Esse setor não é majoritário, mas tem peso suficiente para influenciar
as posições do partido.
A segunda explicação é o entendimento de
que é necessária a solidariedade com os governos de esquerda diante dos
adversários imperialistas e da direita. Em vez de criticar o governo de Cuba,
deve-se enfatizar o embargo econômico dos Estados Unidos; em vez de criticar
Maduro, deve-se enfatizar a oposição golpista.
Essa ênfase nos abusos da reação silencia
sobre os abusos da esquerda, mas funciona como uma espécie de garantia de que,
quando chegar a vez de a esquerda brasileira ser atacada, ela receberá em troca
a solidariedade internacional —como efetivamente ocorreu na época do
impeachment de Dilma e da prisão de Lula.
A terceira explicação é, de certa forma,
ligada à segunda: os petistas entendem que o impeachment de Dilma e a prisão de
Lula foram uma reação aos avanços sociais produzidos por seus governos e, por
não contarem com suficiente apoio interno, precisaram do apoio internacional.
Nessa leitura para lá de particular, Lula
não foi investigado porque houve um esquema de corrupção bilionário entre a
Petrobras, as empreiteiras e políticos, e Dilma não sofreu impeachment porque
era inepta e não sabia negociar com o Congresso. Lula e Dilma, segundo essa
versão, foram perseguidos porque as elites não suportaram ver os pobres com
comida no prato e as empregadas domésticas andando de avião. Diante do ataque
das elites econômicas, a solidariedade internacional seria imprescindível.
A ambivalência do petismo com respeito aos
governos autoritários de esquerda é fruto da combinação desses três fatores. E
essa ambivalência não é uma excentricidade brasileira. Nos últimos anos, impactou
também as candidaturas de Pablo Iglesias, na Espanha; de Jean-Luc Mélenchon, na
França; e, mais recentemente, de Gabriel Boric, no Chile.
Nestes tempos em que a democracia é
duramente tensionada, não podemos mais nos dar ao luxo de alimentar qualquer ambivalência.
Hoje, mais do que nunca, a defesa da democracia precisa estar em primeiro
lugar.
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