terça-feira, 16 de novembro de 2021

Pedro Cafardo - Daria para aliviar o custo da pandemia para pobres

Valor Econômico

Sistema voluntário de pagamento de vacina seria possível, mas governo negacionista é um dos entraves

São tão vergonhosas certas decisões tomadas no Brasil, como a aprovação da “PEC do Calote” na semana passada, que muita gente se vê tentada a desistir de participar do debate público.

Com tantas maldades, omissões e negacionismos governamentais, a palavra solidariedade, muito escrita e pronunciada no início da pandemia, está quase esquecida. O uso político-eleitoral de recursos públicos ficou tão explícito que falar em solidariedade sugere hoje mais ingenuidade do que bondade.

Apesar disso, vamos em frente: a carga dos custos da vacinação contra a covid-19 poderia ser menos desigual. Achamos bonito quando empresários, artistas, atletas e outras figuras famosas entraram na fila da vacinação e divulgaram suas fotos com mangas arregaçadas.

Essa exposição pública, sem dúvida, incentivou e incentiva as pessoas a tomar a vacina, única forma de combater a pandemia e promover a retomada da economia.

É constrangedor observar, porém, que essas pessoas ricas e famosas tomaram “de graça” suas vacinas. O “de graça” está entre aspas porque ricos, como todos os brasileiros, são pagadores de impostos - esqueçamos aqui a carga tributária desigual - e têm o direito à vacina, naturalmente. Mas não é preciso fazer pesquisa para saber que dezenas de milhões de brasileiros, das classes altas e médias, não apenas ricos e famosos, concordariam em pagar pelas suas imunizações. Em tempo, não estamos falando em furar fila.

“Mas o problema do Brasil não é de falta de dinheiro para a vacinação, e sim de falta de vontade do governo federal, que não acredita na importância da vacina” - rebate uma observadora atenta da cena atual brasileira.

Esse argumento é parcialmente verdadeiro. De fato, o negacionismo é talvez a maior praga que infectou o governo atual, entre tantas observadas nos últimos três anos. Agora que as imunizações já fazem efeito positivo na vida das pessoas e na economia, é possível avaliar a destruição que a política antivacina provocou no país.

Apesar disso, é correto considerar que o custo da vacinação tem sido bastante elevado. Deixemos de lado o que já se gastou para aplicar cerca de 300 milhões de doses. Está em andamento a aplicação da terceira dose, de reforço, e o país vai precisar em um ano de mais 350 milhões de imunizantes. Vamos estimar, para efeito de raciocínio, um valor médio de US$ 10 para cada vacina. Nesse caso, o custo total da terceira dose seria de US$ 3,5 bilhões, ou quase R$ 20 bilhões, sem contar o custo de distribuição e aplicação.

Quando o governo põe no Orçamento esses R$ 17 bilhões, dentro ou fora do famigerado teto (retrátil) de gastos, todos os brasileiros vão pagar por eles, por meio de impostos. Para os pobres, esse custo é absurdamente alto. Para os ricos, irrelevante.

Num país onde solidariedade não parecesse ingenuidade, daria para instituir um sistema pelo qual, sem privatizar a aplicação, os vacinados pudessem pagar voluntariamente pela vacina. O depósito mínimo seria de R$ 55, considerado o valor médio de US$ 10, mas os mais abastados poderiam pagar quantas vacinas quisessem: dez, cem, mil, 1 milhão. Com ajuda da mídia, talvez fosse possível arrecadar alguns bilhões, boa parte dos custos da terceira dose.

Aí surge o problema: como confiar neste governo negacionista e garantir que o dinheiro seja efetivamente aplicado na compra e distribuição de vacinas e no combate à pandemia? Sim, é enorme a chance de a receita doada ser aplicada em cloroquinas, armas, passeatas, desfiles de tanques fumacentos, emendas de relator e outras maluquices atuais. Mas, na linha do neoliberalismo bolsonarista, poderíamos privatizar essa operação: criar um fundo para recolher e um mecanismo para distribuir os recursos dentro das regras legais. Esse dinheiro não precisaria, então, passar pelas mãos dos gulosos fiscalistas detentores das chaves dos cofres públicos. Poderia ir diretamente para o admirável Sistema Único de Saúde (SUS). Em tempos de PIX e fintechs, isso seria tarefa fácil, por exemplo, para o ágil e digitalizado pessoal da Faria Lima.

Outra opção seria destinar os recursos doados para financiar o aumento da produção de vacinas no país na Fiocruz, no Butantan e em outros laboratórios.

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Essa conversa toda, portanto, é sobre doações, “vício do bem” difundido em vários países, mas que não pega no Brasil, talvez porque se considere que essas colaborações acabam indo para o governo e não para o país.

Nessa área, temos um péssimo precedente na história brasileira recente. Os mais jovens podem não saber que, 57 anos atrás, um mês depois do golpe militar de 1964, lançou-se a campanha “Ouro para o Bem do Brasil”. Ultranacionalista, criada pelos “Diários Associados”, a campanha incentivou as pessoas a doar alianças, anéis, correntinhas e outras peças de ouro para “salvar o país do comunismo”, pagar a dívida externa e reativar a economia, porque não havia reservas cambiais e a inflação já superava 100% ao ano.

Foi um fiasco, não por causa da falta de adesão. O repórter José Carlos de Moraes (1922-1999), o Tico-Tico, narrava ao vivo, com grande emoção, o enorme movimento nas filas de doadores na rua Sete de Abril, no centro de São Paulo, onde estavam os estúdios da TV Tupi, pertencente aos Diários Associados. Quem doava recebia como brinde uma aliança de latão com a inscrição “Doei ouro para o bem do Brasil”.

No fim da campanha, informou-se que foram arrecadados só em São Paulo 1.200 kg de ouro que, em valores de hoje, representariam uns US$ 72 milhões. Nunca se soube quanto foi arrecadado em outros Estados nem como foram utilizados os recursos. Houve denúncias sobre desvios, mas tudo caiu no esquecimento.

A fracassada campanha de 1964 arrecadou ouro e também dinheiro, mas ficou longe de “salvar o Brasil”.

O pagamento voluntário das vacinas também não seria uma atitude para salvar o Brasil da pandemia e da crise econômica. Poderia, pelo menos, dar algum conforto psicológico às classes mais favorecidas, envergonhadas com a carga desigual que a pandemia, a inflação e o desemprego, sem nenhuma compaixão da autoridade federal, despejam sobre os brasileiros pobres.

 

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