Valor Econômico
Órgão estaria deixando papel fiscalizador
para assumir uma postura mais consultiva em relação ao Executivo
A eleição para a vaga recém-aberta no
Tribunal de Contas da União (TCU) ignorou um debate que provoca cada vez mais
aflições no governo e na iniciativa privada: por acaso o órgão de controle tem
atuado não apenas como “watchdog” (que supervisiona a obediência às regras e à
lei), mas assumido excessivamente as funções de “sheepdog” (conselheiro que
guia políticas públicas e ações governamentais por meio da expedição de
comandos)?
O tribunal já mexeu na taxa de retorno dos leilões de energia, multou diretores da Antaq por considerar que eles não regularam adequadamente a cobrança de uma tarifa por terminais portuários, entrou nos acordos de leniência com empreiteiras da Lava-Jato, travou a liquidação da estatal dos semicondutores (Ceitec), mandou os bancos públicos devolverem R$ 199 bilhões ao Tesouro. Suas decisões - não se discute se certas ou erradas - têm feito surgir uma safra de textos acadêmicos e análises sobre o raio de atuação do TCU.
A dissertação de mestrado do advogado
Antônio Bastos, na UERJ, mapeia aproximadamente 200 acórdãos do tribunal para
investigar como ele age nas escolhas regulatórias de uma agência específica -
no caso, a ANTT (que fiscaliza e regula concessões de transportes terrestres).
Seus achados revelam uma atitude intrusiva do TCU, como se fosse um regulador
de segunda instância. Ele encontrou quase 600 determinações e mais de 100
recomendações. Em 70% dos casos, sobre a atividade-fim da agência. Ou seja, não
se falta pessoal ou se há problemas nos contratos administrativos, mas como ela
deve fixar revisões das tarifas de pedágio em concessões rodoviárias ou como fazer
a modelagem antes de um leilão.
“A unidade técnica refaz os cálculos feitos
em estudos de viabilidade prévios às licitações, verifica se os métodos de
regulação são adequados e vai aos detalhes nesses itens. O TCU praticamente
refaz o trabalho que caberia à ANTT”, afirmou Bastos em uma live recente da
Portugal Ribeiro Advogados, o escritório onde trabalha. “A ANTT continua sendo
o regulador, obviamente, mas o TCU se tornou uma instância de redundância
ocasional. Como se fosse um supervisor das escolhas feitas pela agência”,
acrescentou.
Em três de cada quatro acórdãos, o plenário
acata de forma praticamente integral a proposta de encaminhamento da área
técnica, sem alterações relevantes. Detalhe: o advogado não identificou um
volume significativo de casos em que o TCU tenha discordado da ANTT, mas
reconhecido que talvez coubesse à agência decidir sobre determinado aspecto.
O pesquisador Eduardo José Grin, da FGV-SP,
escreveu para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) um texto em que
aponta o aumento, entre 2005 e 2019, de auditorias operacionais e relatórios de
fiscalização cujos objetivos são avaliar, parcial ou totalmente, políticas
públicas de diversas áreas. Saúde, educação e inclusão social são os campos de
atuação mais forte dos trabalhos.
Não é uma tendência apenas no Brasil,
segundo Grin, ver o tribunal de contas propondo ações e definindo metas para as
políticas públicas, embora estas sejam uma tarefa primordial de lideranças
eleitas e da burocracia estatal. No papel, o TCU é órgão auxiliar do Congresso
Nacional e responsável pela fiscalização do Poder Executivo. Na prática, tem
dotação orçamentária própria, capacidade de autorregulação (com lei orgânica e
regimento interno), um quadro técnico altamente qualificado (cinco vezes e meia
mais servidores com título de mestre ou doutor do que no Poder Judiciário),
canais diretos de interlocução com agentes políticos, com outras esferas de
poder e a sociedade.
Compete ao TCU, segundo a Constituição
Federal, vigiar a “legalidade” dos atos tomados pelo Executivo. Ocorre que o
conceito de ilegalidade vai sendo alargado por meio de normas e jurisprudência
que podem afastar-se do sentido original, alerta Francisco Sérgio Alves,
auditor do tribunal, em artigo na revista do Senado em que analisa o “ativismo”
do órgão de controle.
Casos de corrupção e má conduta de
dirigentes estatais, bem como a avaliação negativa de muitos serviços públicos,
favorecem a atuação mais incisiva do TCU. Um efeito paradoxal é que, quanto
mais o tribunal ganha relevo, mais se exacerba a desconfiança em órgãos do
Executivo. Pode-se reforçar o jogo de obediência formal às regras e ampliar os
custos organizacionais para monitorar decisões do tribunal, em vez de gerar uma
melhoria efetiva das políticas. E um risco adicional: o “apagão das canetas” -
medo dos gestores de assinar alguma medida que lhe venha a custar o CPF no
futuro, mesmo se não houver dolo. Para muitos analistas, isso estimula lentidão
ou paralisia da máquina pública.
Em um artigo memorável que publicou em
2018, no jornal “O Globo”, o ministro Bruno Dantas complementou. Ele apontou a
importância de avaliar políticas públicas que tomam bilhões do Orçamento e, se
ineficientes, são mais custosas à sociedade do que uma licitação fraudada. Mas
defendeu a “autocontenção” dos auditores, acentuando que o controle de
eficiência deveria mirar processos de tomada de decisão e a razoabilidade dos
critérios adotados. “A hipertrofia do controle gera a infantilização da gestão
pública. Agências reguladoras e gestores públicos em geral têm evitado tomar
decisões inovadoras por receio de terem atos questionados.”
Parabéns ao senador Antônio Anastasia
(PSD-MG), uma das mentes mais aptas em Brasília para qualificar essa discussão.
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