Folha de S. Paulo
Ninguém mais faz. Entrega. Ninguém mais se
coloca. Posiciona-se. A língua se cafoniza
Narrativa, até há pouco, era uma narração, uma história, um conto. "Os Lusíadas", de Camões, era uma narrativa poética; "Dom Casmurro", de Machado de Assis, uma narrativa de ficção; "Os Sertões", de Euclides da Cunha, uma narrativa histórica. Mas a palavra caiu para a 2ª divisão. Narrativa é agora uma história fabricada, que se tenta impor como verdade, e assim a tratam os políticos. Quando um deles é acusado de roubar ou mentir, diz que isso é uma "narrativa". Claro que essa resposta também é uma "narrativa".
Se elegante é falar simples e falar afetado
é cafona, a cafonização da língua retumba. Ninguém mais diz que fulano faz isto
ou aquilo. Diz que ele "entrega". Ninguém mais diz total, diz
"somatório". Perto, agora, é "próximo". Rápido é
"ligeiro". Depois é "após". Ninguém mais se coloca
—"posiciona-se". E ninguém mais vive um problema
—"vivencia".
De repente, expressões com séculos de
bons serviços
prestados à língua no singular viram-se multiplicadas por si
mesmas e transformadas num plural sem sentido. Sem problema se tornou "sem
problemas". Sem dúvida, "sem dúvidas". Com folga expandiu-se em
"com folgas". Com sobra em "com sobras". Nadar de braçada
em "nadar de braçadas". Paca, não o bicho, mas o chulo brasileiro
inventado pelo "Pasquim", contração de pra caralho, há muito se
tornou, comicamente, "pacas". E já ouvi até "manda-chuvas"
e "guarda-chuvas" —este último deve ser o que se usa quando começa a
chover pacas.
Ao mesmo tempo, todos os advérbios se
converteram ao proparoxítono. Um deles, especificamente, exige uma cambalhota
de lábios, língua e dentes —diz-se agora "espécificamente". E ninguém
mais focaliza, enfoca ou se concentra em alguma coisa. Apenas "foca"
nessa coisa. Eu foco, tu focas, ele foca. Nós focamos, vós focais, eles focam.
Alguns, para melhor focar, pulam para o tamborete e batem palmas.
Este colunista vai ali e volta já. Até o
dia 23!
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