Valor Econômico
O antibolsonarismo precisa conhecer seus
rivais para derrotá-los
A mídia apoia os gays para promover o
controle populacional? Há livros ensinando crianças a fazer sexo oral com
elefantes? O general Geisel era comunista? Nazismo e FMI são de esquerda? Bill
Clinton era um agente de Pequim? A internet foi criada para combater o ateísmo?
Essas perguntas, da forma como estão
reproduzidas acima, faziam parte da descrição de comunidade criada em 2004, no
finado Orkut, e dedicada ao escritor Olavo de Carvalho. Deve-se à pesquisadora
Michele Prado, autora do livro “Tempestade Ideológica”, um relato curioso sobre
os primeiros passos e o crescimento do olavismo no país. Seu estudo, lançado no
ano passado, merece ser lido com atenção - para quem não tiver tempo ou
paciência, dá para se contentar com os capítulos 1 a 3 (os restantes são bem
inferiores e muitas vezes se tornam mero glossário sobre movimentos radicais,
sobretudo nos EUA, já amplamente conhecidos por quem se interessa pelo tema).
A nova direita, no Brasil e no exterior, leu e se aprofundou sobre estratégias da esquerda e obras de referência no ambiente progressista. O inverso não é verdadeiro. Com frequência, trata-se o ultraconservadorismo com deboche e desprezo. A falta de conhecimento e a indiferença sobre como pensa essa fatia do eleitorado, por radical que seja, impede o desenvolvimento de táticas eficientes para rebater ou neutralizar seus planos de ação.
Por isso o livro de Michele Prado é
recomendado para iniciantes e iniciados. Um de seus méritos é o resgate de como
esse fenômeno surgiu no Brasil, influenciado de modo determinante por Olavo, e
foi ganhando espaço enquanto era subestimado ou ignorado pelos formadores de
opinião. Para a esquerda e eventuais terceiras vias, saber o que faz a cabeça
de seus seguidores é fundamental.
Michele sustenta que o olavismo reúne
diversas características de seita: 1) o líder é visto como mensageiro de uma
verdade suprema; 2) deve-se a ele fidelidade total; 3) apoia-se na conversão
pessoal, que implica mudanças no modo de vida e forte componente emocional; 4)
é pouco dialogante e defende energicamente sua ideologia, provocando quase
sempre um isolamento do mundo; 5) seus membros “renascem” e se veem como
eleitos, ou seja, que foram escolhidos para desempenhar uma missão muito
importante.
Um ingrediente básico do renascimento é o
“necrológio” - exercício obrigatório nas aulas iniciais do curso de filosofia
de Olavo. O aprendiz presume-se morto e, em terceira pessoa, reflete sobre sua
vida que ali se encerra. “Ao criar esta narrativa, será possível ter um mínimo
de orientação moral na vida”, explica a produtora Brasil Paralelo, espécie de
Netflix da direita, em seu site. “Saber quem você é agora, quem quer ser e
julgar suas ações nesta transição.”
Os necrológios servem como ponto de
inflexão para esses aprendizes e geram sensação de pertencimento a um grupo de
iluminados. Estimulados por Olavo, que repetia à exaustão sua responsabilidade
histórica de resgatar a alta cultura no Brasil, eles alimentavam uma ideia de
grandeza e de missão intelectual a respeito de si mesmos. “O sentimento de
superioridade por fazer parte do grupo de alunos era incentivado por Olavo
desde a primeira aula. A ideia de que aqueles alunos eram especiais e tinham
nas mãos o destino da cultura de um país inteiro - e que ele próprio era o
único educador no Brasil capaz de criar uma elite espiritual e cultural para a
salvação da nação - é textualmente mencionada pelo professor na aula 01”, diz
Michele no livro.
O advogado Horacio Neiva, doutorando em
Filosofia do Direito na USP, foi ontem às redes sociais explicar como se
desiludiu em sua experiência com o olavismo quando era um jovem universitário.
Lembrou uma das marcas registradas de Olavo: o “name dropping”. Ele despejava,
nos alunos, grande quantidade de obras e autores desconhecidos. Que efeitos
isso produzia? Afirma Neiva: uma percepção de que os demais professores eram
ignorantes (e Olavo era a luz); crença de que havia um complô para impedir o
acesso a essas fontes de conhecimento; a sensação de que o grupo estava
resistindo a uma ameaça (política, cultural, intelectual); a autoconfiança
injetada em jovens e adultos de baixa formação, mas que se sentiam
metodologicamente validados em sua ignorância.
(Aqui abro parênteses para relatar uma
interação que tive recentemente com um olavista raiz. Quando conversávamos
sobre disseminação de fake news, ele me perguntou em quais argumentos teóricos
eu baseava minhas afirmações. Diante da resposta, tripudiou e disse a única
referência possível na discussão era Ion Pacepa. Ion Pacepa? Fiquei
envergonhado e intimidado por desconhecer o autor. Achei inadmissível para um
jornalista dedicado ao tema. Descobri que se tratava de um ex-chefe de
espionagem da Romênia comunista de Nicolae Ceausescu. Ele desertou e fugiu para
os EUA. Escreveu o livro “Desinformação” para contar como conseguia plantar
falsas notícias na mídia ocidental e desestabilizar governos. Fiz questão de
encomendar e ler. É uma boa história, nada além disso, sem a fundamentação
teórica que meu interlocutor cobrava de mim, supostamente para me acuar na
discussão. Ah, o “name dropping” de Olavo...)
Em “Tempestade Ideológica”, Michele Prado
relembra como o advento do Orkut - e logo em seguida do Twitter e do Facebook -
deu mais visibilidade às ideias de Olavo, antes colunista pouco lido de
jornais. Os algoritmos se encarregaram de amplificar o alcance das mensagens.
Olavo foi ganhando cada vez adeptos para seus seminários de filosofia em
plataforma virtual. As crises econômicas e políticas de 2013 em diante,
associadas ao PT, reforçaram o discurso da nova direita. O mantra “Olavo tem
razão” saiu dos porões da internet e virou faixa nas ruas.
No governo Jair Bolsonaro tivemos os 600
mil mortos da pandemia, as vítimas do crime em Brumadinho, perdemos Elza
Soares, Paulo Gustavo, Eva Wilma, Nicette Bruno, Tarcísio Meira, João Gilberto,
Nelson Sargento, Marília Mendonça, Bruno Covas. Nenhum deles mereceu a
deferência feita pelo presidente com o decreto de luto oficial com a morte de
Olavo. Bolsonaro tenta afagar sua base mais radical, mas não parece tratar 20%
do eleitorado brasileiro com chacota, como fazem muitos de seus rivais. Para
derrotá-los, é bom entendê-los.
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