O Globo
A metáfora do gorila invisível — num teste
psicológico, o primata cruza de forma ostensiva o meio de um jogo de basquete,
mas não é percebido por mais da metade dos que lhe assistiam — ganha novo
realce no cenário político brasileiro. Em 2018, Bolsonaro foi eleito no segundo
turno com 55,13% dos votos válidos. A maioria dos eleitores também não viu o
gorila, não obstante ele bater no peito, guinchar e secretar fúnebres hinos de
tortura e louvores à ditadura. Não resta dúvida de que alguns, só por isso,
votaram no capitão: são expressão de uma faceta subterrânea e violenta — embora
minoritária — da alma brasileira.
Na semântica popular — mas com todo o respeito a supostos ancestrais —, o substantivo gorila, fiel à triste memória da ditadura, passou a definir o militar de extrema direita, que toma o poder pelo golpe ou defende essa via. Por extensão, deu nome a pessoas truculentas e políticos fascistas — os que supõem bastarem jipe e soldado para fechar o STF. Na fauna das analogias para desvendar a oculta — e negada — realidade que nos cerca, há outra: a do rinoceronte cinza, que define um risco não percebido. Embora esteja bem à nossa frente: gorilas, pandemias, mudança climática.
O bombardeio de estímulos a que estamos
submetidos produz hoje uma conspiração anônima e invisível contra a atenção.
Perde-se o foco com facilidade. Ficamos cegos ao visível e sujeitos à
manipulação. Freud notou que a atenção foi exigida à mente humana por força da
tarefa de observar a realidade. Mas deixou implícita a origem da atenção no
sistema alucinatório, que a precede. O parentesco explica por que deixamos de
ver o que está bem à frente ou inventamos um real que não existe fora da
cabeça: figuras bizarras, anfíbias, meio reais, meio imaginárias. Alucinação
não é monopólio dos psicóticos.
E a invisibilidade não é privilégio do
gorila da extrema direita. As pesquisas hoje mostram eventual retorno do
ex-presidente Lula. É preciso lembrar as mazelas do petismo? Porém, com bom
trânsito internacional, capacidade de articulação política, Lula agora pode ser
um avanço civilizatório ante o que está vigente. Em seus dois mandatos,
facilitado pelo boom das commodities e boa equipe econômica, desfrutamos
crescimento e expansão cultural, distribuição de renda, e a Bolsa subiu 497,3%.
Há consolo na esperança de constituição de
uma frente democrática que equilibre os extremos e sirva como regulador ético.
Até suspeitos líderes carismáticos podem crescer com a experiência da dura
lição dos últimos anos. O Brasil está deteriorado; os valores, em decadência; a
qualidade de vida nunca se viu tão prejudicada.
Na segunda vez que fizeram o teste do
gorila, quase todos o perceberam. Se Bolsonaro tentar a reeleição, o gorila
será notado pela maioria dos desatentos de 2018. Não terá de novo o voto dos
que acordaram, dos que sofreram na pele o estrago deixado em seu rastro
primário e truculento — das mortes da pandemia à fome e ao desemprego de
milhares de brasileiros, além do descrédito financeiro e do repúdio diplomático
internacional.
*Psicanalista
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