Valor Econômico
Bolsonaro subverte o conceito de domicílio
eleitoral
Emerge, a poucos meses das eleições, mais
um aspecto da tormentosa relação que Jair Bolsonaro mantém com a política.
Pois agora, além de estruturar sua própria
campanha para permanecer no cargo, o presidente da República está dedicado a
eleger aliados nos Estados, tanto para os governos locais como para as 27
cadeiras que ficarão vagas no Senado. O mesmo foi feito por seus antecessores.
A diferença é que Bolsonaro passou a falar - sem pudor - em como pretende
distribuir as peças no tabuleiro, mesmo que essa estratégia represente mandar
um ministro carioca disputar o governo de São Paulo ou uma auxiliar paranaense
concorrer ao Senado por um Estado do Norte ou Sudeste.
Isso é subverter o conceito de “domicílio
eleitoral”, um dos pilares da legislação.
Do ponto de vista de quem vota, a prática pode gerar uma grande confusão. Não foram poucos os que pelo menos uma vez acharam que o ex-presidente José Sarney fora eleito para o Senado pelo seu Estado natal. O emedebista nascido e criado no Maranhão era, contudo, um legítimo representante do Amapá.
Ao deixar a Presidência, Sarney não
conseguiu articular uma candidatura pelo Maranhão. Participou, então, da
primeira eleição do novo Estado. Saiu vitorioso.
Porém, o que pode parecer estranho para o
eleitor é capaz de fazer todo o sentido para estrategistas políticos e até
mesmo para alguns juristas. E de fato, com o passar dos anos, foi se
consolidando uma distinção entre “domicílio civil” e “domicílio eleitoral” no meio
jurídico.
No primeiro caso, geralmente é considerado
o lugar onde a pessoa estabelece residência com vontade de lá permanecer
definitivamente, inclusive tornando esse local o centro principal dos seus
negócios ou de sua atividade profissional.
O conceito de “domicílio eleitoral”,
contudo, é mais flexível. Aqui não existe necessidade de centralizar a vida em
determinado lugar. O que se considera é um vínculo especial, ou seja, um elo
familiar, social, afetivo, patrimonial, econômico, profissional ou político.
O próprio Bolsonaro é um caso a ser citado.
Nascido no interior de São Paulo, mudou-se para o Rio de Janeiro e por lá
construiu carreira política depois de sair do Exército. Nunca virou as costas
aos temas de interesse do Estado, os quais hoje passam pela mudança do modelo
de concessão do aeroporto Santos Dumont e pela adesão do governo fluminense ao
regime de recuperação fiscal. Seu filho Eduardo aprendeu a fórmula, e abriu uma
subsidiária da família em São Paulo. Foi o deputado mais votado do Estado em
2018.
Hoje existem dois outros exemplos que
chamam atenção. Um é o do ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, que
já teve o nome cotado para disputar algum cargo por Goiás ou pelo Distrito
Federal. Mas, acabou convencido pelo presidente a concorrer ao governo de São
Paulo. No último dia 13, durante uma “live”, Bolsonaro afirmou: “Logicamente
não vai saber com profundidade nem particularidade sobre certos problemas sobre
o Estado de São Paulo, assim como eu não sei do Brasil. Agora, o Tarcísio pode,
sim, ser uma esperança para São Paulo”. O ministro é bem visto por empresários,
e é capaz de ultrapassar as barreiras que um pré-candidato identificado com a
ala ideológica do bolsonarismo enfrentaria.
Já a ministra da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos, Damares Alves, destaca em seu currículo que é “paranaense de
nascimento e nordestina de coração”. Já morou na Bahia, em Alagoas e Sergipe.
Também viveu em São Carlos, interior de São Paulo, onde formou-se na faculdade
de direito.
Não se pode negar, portanto, que possui
vínculo com o Estado pelo qual pode concorrer a uma vaga no Senado, se aceitar
o convite feito pelo presidente para se candidatar por São Paulo.
Nos últimos dias, Damares tem alimentado a
discussão sobre seu futuro político nas redes sociais. Primeiro, fez diversas
publicações mencionando uma eventual disputa com o senador Davi Alcolumbre
(DEM), no Amapá.
Presidente da Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ), Alcolumbre entrou na mira do eleitorado evangélico de seu Estado
depois que fez de tudo para atrasar a nomeação de André Mendonça para o Supremo
Tribunal Federal (STF). Damares é pastora. E tem muita experiência no
Parlamento, onde já assessorou diversos deputados e senadores. Não seria
exagero dizer que praticou “bullying” com Alcolumbre nessas postagens.
Mas essa discussão nem estaria acontecendo
neste momento, e muito menos se prolongaria até 2 de abril, se a reforma
eleitoral concluída em 2017 não tivesse reduzido de um ano para seis meses o
prazo para a definição do domicílio eleitoral dos candidatos. No fim das
contas, a nova regra acabou dando margem para que partidos ou líderes
políticos, municiados com pesquisas de intenção de voto, avancem muito no
calendário antes de decidir como distribuir alguns candidatos pelas 27 unidades
da federação.
Essa é uma discussão que o Congresso deve
enfrentar novamente. No Senado, aliás, existe um projeto de lei que tenta
restabelecer o prazo de um ano para a mudança de domicílio eleitoral e filiação
a partido político.
“Na prática, a exigência de filiação
partidária faz com que o aspirante a candidato deva, antes de levar seu nome à
convenção eleitoral, conviver com seus correligionários na vida partidária,
nela mostrar suas qualidades e conquistar assim a confiança dos companheiros de
partido e dos convencionais”, justifica o autor da proposta. “Consideramos o
prazo de seis meses, hoje vigente, insuficiente para cumprir tal propósito.
Além disso, prazos demasiado curtos de filiação partidária, bem como de
domicílio eleitoral, podem vir a estimular a prática da migração partidária
que, ao reposicionar repetidamente os mesmos candidatos em partidos com agendas
diferentes, contribui para a desinformação dos eleitores e a redução da
qualidade do voto”, acrescenta.
O projeto foi apresentado no ano passado. É da lavra de Ciro Nogueira, que se licenciou do cargo de senador pelo Piauí e da presidência do PP para assumir a chefia da Casa Civil.
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