domingo, 20 de fevereiro de 2022

Míriam Leitão: Estamos perdendo a guerra do clima

O Globo

Morros altos e íngremes descendo em belas escarpas até vales estreitos. A geografia de Petrópolis encanta o país desde o Império. Nos últimos dias foi o cenário de horror e de morte. Um dos mitos fundadores do Brasil está no primeiro verso do Hino Nacional. Estamos deitados em berço esplêndido, terra livre de terremotos, vulcões e furacões. A mudança climática eleva o custo dos erros velhos, como a ocupação desordenada do solo urbano, e o desmatamento acelera a mudança climática. O Brasil é hoje um país exposto às tragédias que ele mesmo tem provocado.

Não é natural ter pessoas morando em áreas de risco, ter confinado rios em canais estreitos e desmatado e ocupado as suas margens. Não é natural abandonar os pobres sem habitação e eles terem que se dependurar em casas frágeis nas encostas. Nada há de natural nos erros todos que o Brasil comete, antigos e atuais, e que vão criando o roteiro das catástrofes humanas e ambientais que temos vivido.

Vamos chorar centenas de mortos, alguns tirados dos escombros, outros ainda soterrados. Só não podemos chamar de natural o desastre que o Brasil mesmo tem contratado. Nem são naturais as mortes que poderiam ter sido evitadas.

A ciência está enviando avisos terríveis. Os eventos serão mais extremos e mais frequentes. E o Brasil é vulnerável. A maior parte dos brasileiros mora na região costeira e a elevação do nível do mar vai afetar as cidades, a ocupação irracional dos morros torna os moradores alvo fácil nas grandes tempestades tropicais, a área do semiárido está se desertificando, aumentando a miséria. A Floresta Amazônica está morrendo pelas bordas com o ataque sistemático dos madeireiros e do garimpo. Rios abundantes e perenes estão se tornando intermitentes, o Cerrado, berço das águas, sofre com a ideia equivocada de que é um bioma de menor valor e pode ser desmatado para o avanço indiscriminado da agropecuária.

Tudo isso nos torna indefesos neste tempo da mudança climática que já está entre nós. Os mortos de Petrópolis pagaram um preço alto pelos erros de várias administrações. Depois da tragédia na região serrana, há 11 anos, houve tempo para a prevenção. Eles foram vítimas das armas de destruição em massa disparadas pela negligência governamental.

Na mesma semana em que pessoas foram soterradas em Petrópolis, o governo Bolsonaro editou dois decretos para estimular ainda mais o garimpo na Amazônia, que tem invadido terras indígenas e destruído preciosos cursos d’água. O governo diz que é uma atividade artesanal. Mentira. O garimpo hoje utiliza maquinário pesado e caro, e o governo sabe muito bem disso. Cada vez que servidores tentam combater o crime, o governo se alia aos criminosos. Acabou de acontecer. Dias atrás, uma operação da Polícia Federal e da Força Nacional foi atacada por garimpeiros em Jacareacanga e Itaituba. O prefeito de Itaituba, Valmir Climaco, foi a Brasília pedir a suspensão da operação e foi recebido, no dia 15, pelo ministro da Casa Civil.

O ritmo do desmatamento tem aumentado nos últimos meses e em janeiro deste ano os alertas do Deter cresceram 418% em relação ao mesmo mês do ano anterior. É a liquidação geral, diante da possibilidade concreta de que Bolsonaro perca a eleição. O país vive essa marcha insensata do desmatamento, garimpo, invasão de terras públicas, o que intensifica os riscos da mudança climática, cenário no qual os desequilíbrios desabarão sobre as nossas cabeças.

O presidente mentiu de novo. Desta vez em Moscou e Budapeste. Garantiu que não existe desmatamento da Amazônia e agradeceu a Vladimir Putin por ter defendido a soberania brasileira sobre a floresta, soberania que está sendo entregue pelo governo Bolsonaro a grupos de criminosos.

Na sexta-feira, Bolsonaro sobrevoou Petrópolis e disse que era um cenário de “quase guerra”. Para os que foram arrastados pela enxurrada dentro dos ônibus, os que foram tragados pelas águas barrentas, para a mãe que cavou com as mãos atrás da filha morta, para o rapaz que procura pela mulher e os filhos, para os parentes dos soterrados, para todos os mortos, isso é uma guerra. Nós a estamos perdendo quando a floresta tomba com ajuda federal, nós a estamos perdendo quando o temporal atinge brasileiros desamparados. Nós estamos perdendo a guerra do clima. Estamos perdendo a guerra.

 

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