O Globo
A visionária cientista e ambientalista Rachel Carson, autora do clássico “Primavera silenciosa”, alertara o mundo já nos idos de 1960: “O ‘controle da natureza’ é uma frase concebida na arrogância, nascida da era Neandertal da biologia e da filosofia, quando se supunha que a natureza existe para a conveniência humana”. Bingo. No Brasil de 2022, como ao longo de seus 200 anos desde a Independência, a natureza continua a ser tratada como commodity a serviço de suas sucessivas elites. Em nome de uma prosperidade seletiva, gananciosa, ela, a natureza, nunca conseguiu ter lugar à mesa — nem mesmo diante da revolta climática em franca rebentação sobre o planeta.
As cenas de horror vividas nesta semana por
moradores de Petrópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro, vieram consolidar
algo semelhante a um trauma nacional por abandono à própria sorte. O sentimento
é de um país à deriva em mãos delinquentes — tanto no governo como no Congresso
—, esquecido num faroeste institucional sem precedentes. A dimensão da tragédia
mais recente foi resumida com precisão por Flávia Oliveira neste mesmo espaço, dois dias atrás, cuja
coluna se recomenda aqui. Começava assim: “Estão soterrados o Estado
(brasileiro) e o estado (Rio de Janeiro) incapazes de, 48 horas depois de uma
tragédia com centena de mortos, assistir as áreas devastadas. Afundou na lama a
gestão pública que não apenas desrespeita a vida, como também despreza a morte.
Execrável é a palavra que define o papel das autoridades na catástrofe de
Petrópolis. Onze anos depois de a mesma região sofrer o maior desastre natural
da História do país, em que mil pessoas desapareceram, homens e mulheres, pais
e mães, familiares e vizinhos, com as próprias mãos, escavam escombros para
resgatar corpos de vítimas”.
Como não ficar em carne viva com o tom
institucional das “mensagens de apoio” de autoridades, coalhadas de gerúndios e
do advérbio “já” para sugerir ações em andamento, quando falta tudo? Nem sequer
as verbas existentes para a prevenção de calamidades climáticas foram usadas
por inteiro nas duas últimas décadas. O tom deliberadamente descompromissado da
postagem solidária emitida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, teve ar de
paisagem. Dono e patrono do pérfido “orçamento secreto”, que abriu as burras
federais para acomodar as tantas demandas político-particulares na Casa, Lira
jamais cogitaria destinar uma só piastra dos R$ 16,5 bilhões abocanhados para
contemplar um Brasil náufrago.
Sem falar na mensagem de pesar assinada por
“Dom Orléans e Bragança, Príncipe Imperial do Brasil”, que levou um dia inteiro
para ser emitida! A lama já havia engolido mais de cem vidas e destruído a
cidade que alimenta sua dinastia. “A Família Imperial, tão estreitamente ligada
a Petrópolis, encontra-se sempre disposta a servir seu povo, oferecendo ainda
nossas orações e solidariedade...”, diz um trecho da nota, estendendo gratidão
aos integrantes dos primeiros socorros e “beneméritos particulares —dentre os
quais há muitos monarquistas”. Enquanto milhares de brasileiros anônimos
acorriam ao local para mergulhar na terra encharcada em busca de desaparecidos,
o site Metrópoles apurou que o mesmo “Dom Bertrand” encontrara tempo e
disposição para participar de uma gravação num canal humorístico conservador
—se é que humor e conservadorismo ainda podem coexistir no Brasil de hoje.
Tampouco o autointitulado “príncipe” Luiz
Philippe de Orléans e Bragança, que exerce o cargo republicano de deputado
federal pelo PSL de São Paulo, foi visto chafurdando entre destroços. Tetraneto
do imperador Dom Pedro II, o parlamentar adquirira nova notoriedade em 2021 ao
omitir do Tribunal Superior Eleitoral mais de R$ 7 milhões que depositara numa
offshore nas Ilhas Virgens.
Não seria este o momento apropriado para
uma Família Real efetivamente nobre abrir mão de um laudêmio criado por Dom
Pedro II em 1847, exclusivamente para benefício próprio? Popularmente conhecido
como “taxa do príncipe”, o tributo incide sobre vendas de imóvel em terreno
petropolitano que algum dia pertenceu à antiga Família Imperial. São 2,5% de
toda transação imobiliária desse imenso latifúndio, com pagamento à vista,
direto para uma empresa administrada por dez herdeiros da linhagem dos Orléans
e Bragança. Coisas do Brasil.
Quase todo ser humano pode ser ensinado a
pensar, a acreditar, a adquirir conhecimento. Mas ninguém pode ser ensinado a
sentir. O povo brasileiro jamais conseguirá ensinar o que é humanidade e seu
corolário de interesse pelo próximo, a governantes e lideranças desprovidos
desse privilégio. Mas, como diz a sempre incandescente Rita Lee, “o que a gente
mais quer no mundo nesse momento? Mudar! Mudar para melhor, para mais
consciência, mais luz”.
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