Folha de S. Paulo
A renúncia de autoridade vai liberar de vez
o bolsonarista da esquina
Juiz morre pela boca. E o Judiciário morre
pela boca do juiz. Seria bom para a democracia brasileira se ministros do STF
não saíssem por aí tecendo avaliações de conjuntura aos microfones de
jornalistas, em salas de
conferência ou eventos privados em bancos e resorts.
Antecipando juízos, louvando reformas, criticando colegas, mandando recados,
fazendo previsões, passando vergonha.
Não só porque as avaliações se mostram, em
geral, diletantes e autointeressadas. Mas porque não cabem no compromisso
institucional que assumiram. Nem nos rituais de preservação dessa matéria-prima
delicada da qual se constitui a autoridade do juiz. São falas
anti-institucionais que configuram conduta judicial imprópria.
Juízes constitucionais de democracias pelo mundo praticam essa máxima universal da ética judicial. As cortes ganham. Da Alemanha aos Estados Unidos, da Índia à África do Sul. No STF, Rosa Weber e Edson Fachin dão exemplo, mas são vencidos pelos contraexemplos.
Gilmar Mendes concedeu fascinante
entrevista à jornalista Daniela Pinheiro, no UOL, dias atrás. Disse que não vai ter golpe. Porque não.
Explicou que os problemas do Brasil se devem à Lava Jato, chamada de
"totalitária". Já Bolsonaro
"beira o autoritarismo". Teria restado a ele, Gilmar,
beirar o super-heroísmo que fulminou a Lava Jato quando não mais lhe servia,
pariu Augusto Aras e o lava-jatismo invertido apoiado pela advocacia
progressista (por autodeclaração).
Logo ele, lava-jatista raiz de primeira e
segunda hora, autor do ato mais lava-jatista da história por liminar
monocrática pré-feriado usufruído em Lisboa, onde coordenou conferência
lava-jatista organizada por sua empresa educacional na presença de lideranças
partidárias do país. O ato mais lava-jatista da história (a invalidação-relâmpago
da nomeação de Lula como ministro de Estado, com base em doutrina
jurídica de um caso só) nunca foi revisto pelo STF.
Luís Roberto Barroso deixou escorregar
declaração desabonadora sobre militares numa conferência de universidade alemã.
Disse que militares
estão "orientados a atacar as eleições". Nem sequer
admitiu a vocação autoritária de milicos. Foram "orientados" por um
mandante, não por agência própria. O lapso bem comportado bastou para o
contra-ataque. Barroso está sendo acusado de crime militar.
Logo ele, que há anos os elogia. Já afirmou
que militares, apesar de nunca punidos por crimes contra a humanidade, pagaram
preço alto demais pela ditadura. Num governo ocupado por mais de 6.000
militares, recusou-se a enxergá-los no "varejo da política".
Colocou
militar no TSE, pois, apesar de sua fé na resiliência democrática,
não quis pagar para ver. Deu a militares outra arma para provocar desconfiança
nas eleições.
A reação de militares integra a coreografia
ensaiada do palco bolsonarista, universo onde a "ditadura do STF"
(assim como a "ditadura gay") já é fato inconteste. Ali também se
ordenou a infantaria digital a afirmar equivalência
entre a graça concedida a Silveira por Bolsonaro e o refúgio concedido a Battisti por
Lula. Criar equivalência onde há diferença, e vice-versa, é método de onde
emergem muitas teses do ilegalismo autoritário.
Há muitas
maneiras de "fechar" o STF sem fechar o STF. Não precisa
de um soldado e um cabo, nem invocar o artigo 142 da Constituição, onde milicos
decodificaram autorização para golpe (ou "intervenção militar
constitucional"). Mais fácil é tornar a instituição inócua e indigna de
respeito. Ou fazê-la renunciar, voluntariamente, sua autoridade.
A verborragia incontida de ministros
colabora nessa renúncia. Ainda que se deva falar de forma contundente dos
riscos que corre o tribunal, a cacofonia individualista não ajuda. Não se joga
esse jogo sem coordenação estratégica entre ministros.
Enquanto o presidente da República, além de
mandar ministros calarem a boca, avisa outra vez que não vai
obedecer decisão que o contrarie (como no caso do "marco temporal" de
terras indígenas, da graça concedida a Silveira etc.), cresce a pressão sobre o
STF para reabrir "vias de comunicação com o Planalto", ou, no
glossário de Toffoli (que também chama ditadura militar de
"movimento"), por "diálogo".
O STF tem flertado, desde a presidência de
Toffoli, seguida por Fux, com a prática do entreguismo constitucional e da
negociação de constitucionalidade. A atitude talvez salve a própria cabeça de
ministros, mas não salva a biografia nem a democracia, nem as vidas à margem
que estão na mira da violência bolsonarista. Comecemos por usar as palavras
certas, não as diversionistas, para descrever o que vemos.
O STF precisa de apoio, cautela e
clarividência, não de capitulação. De colegialidade contra o individualismo
obstrucionista e boquirroto. A capitulação, afinal, libera de vez o
bolsonarista da esquina. Ele não só ameaça. Ele estupra e mata criança yanomami,
por exemplo.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
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