O Globo
O ex-policial militar Daniel Silveira
(PTB-RJ) nunca ocupou cargos de destaque na Câmara. Até outro dia, era visto até por aliados como um parlamentar
relapso, com pouco interesse pelo Congresso.
Eleito depois de ganhar notoriedade por
rasgar uma placa de rua com o nome da vereadora assassinada Marielle Franco,
construiu a carreira como “deputado youtuber” divulgando fake news, pregando a
desobediência jurídica e ataques físicos a ministros do Supremo.
Quando foi preso pela primeira vez pela
Polícia Federal (PF) por ordem de Alexandre de Moraes, no ano passado,
recusou-se a usar máscara nas instalações do Instituto Médico-Legal em plena
pandemia, traficou telefones celulares para dentro da cela da Superintendência
da PF no Rio e, mais recentemente, acampou no próprio gabinete para evitar ser
obrigado a colocar a tornozeleira eletrônica.
Nos últimos dias, Silveira mudou de
patamar. Condenado à prisão e à perda de mandato pelo STF, recebeu o perdão de
Bolsonaro, ganhou postos em comissões — incluindo a mais importante da Câmara,
a de Constituição e Justiça (CCJ) — e passou a ser visto por parte dos
deputados como símbolo de liberdade de expressão.
Nem é preciso analisar o assunto de perto para constatar que ele é o espantalho político de uma disputa maior. Faz pouco tempo que Bolsonaro subiu num carro de som, chamou Moraes de canalha e disse que não cumpriria mais as decisões do Supremo.
Depois, em apenas 48 horas, conversou com Michel Temer, com o próprio ministro e escreveu uma
carta-recuo. Nela, afirmou que suas palavras “contundentes” decorreram “do
calor do momento” e que “na vida pública as pessoas que exercem o poder não têm
o direito de ‘esticar a corda’ a ponto de prejudicar a vida dos brasileiros e
sua economia”.
Até hoje não se sabe muito bem o que levou Bolsonaro a recuar, mas é certo que sobre essa
atitude pairava a sombra do inquérito das fake news.
Aberto em 2019 e comandado pelo próprio
Moraes, o inquérito avançou sobre as redes de difusão de desinformação que
puseram em dúvida a segurança do sistema eleitoral brasileiro e, mais tarde, se
desdobrou noutra investigação, sobre os atos golpistas que pregavam o
fechamento do Congresso e do Supremo. Consta que o filho do presidente, Carlos
Bolsonaro, é um dos alvos. Silveira é outro.
Essas investigações põem em risco o que
Bolsonaro mais preza — não exatamente a liberdade de expressão, mas sim a
permanência no poder.
Se ele perdeu os rounds que lutou até
agora, foi porque o Congresso entendeu que não havia nenhuma utilidade em
sustentar impulsos golpistas que poderiam acabar com o fechamento do próprio
Legislativo. Enquanto as prisões eram de blogueiros e youtubers, foi melhor
negócio para o Parlamento alinhar-se com o Supremo.
Agora é diferente. O caso Silveira fez a
cúpula do Congresso concluir que a aliança forjada em nome da guerra contra a
Lava-Jato acabou dando poder demais ao Supremo. O que mais tem é deputado e
senador com pendência na Corte, e nenhum deles quer se ver nas mãos de togados
que não falam sua linguagem e têm outras prioridades.
Isso inclui o próprio Arthur Lira (PP-AL),
que depende de o STF manter o orçamento secreto rodando e de conseguir ser
reeleito para a presidência da Câmara.
Embora nas outras crises Lira tenha atuado
ativamente para desmontar as bombas-relógios de Bolsonaro, desta vez ele anda
mais contido, a ponto de ministros do Supremo comentarem que se sentem
“largados” pelo Parlamento. Em conversas reservadas, admitem que podem ter
exagerado na condenação de Silveira e que pode não haver condições políticas
para anularem o perdão presidencial.
Mas isso não quer dizer que engolirão
“provocações”. Na tarde de ontem, Bolsonaro recebeu dezenas de deputados no
Palácio do Planalto. Defendeu Silveira, mas voltou a lançar suspeitas sobre a
segurança das urnas eletrônicas. Entre outras coisas, sugeriu que não só o
mandato dele, mas também o de todos os presentes poderiam ser tungados pelo
TSE.
Não foi um ataque fortuito. Moraes, que
comandará a Corte eleitoral em outubro, já avisou que, mesmo perdoado, Silveira
continua inelegível. Ontem, ao vê-lo circulando na Câmara sem tornozeleira,
aliados do ministro diziam que haveria reação. “A trégua está por um fio”, me
disse um deles. O que acontecerá daqui para a frente é difícil prever, mas é
evidente que a última palavra não está dada. Será um alívio se a vítima final
desse embate não for a própria democracia.
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