O Globo
O calendário marcava 9 de setembro de 2016. Durante evento para arrecadação de
fundos de sua campanha — hospedado pela Casa Cipriani, em Nova York, e tendo
como estrela da noite Barbra Streisand —, a então candidata democrata Hillary
Clinton não mordeu a língua e afirmou que metade dos eleitores de Donald Trump
era “deplorável”. Quase dois meses antes, na convenção do Partido Democrata,
Michelle Obama já demonstrava intimidade com o salto alto: “Quando eles se
rebaixam, devemos nos elevar”. Pouco importa se elas tinham razão, ambas
assumiam o discurso de superioridade moral que regia o debate nos Estados
Unidos. Deu no que deu: Trump na cabeça.
Por aqui, desde 2013 vivemos catarse parecida. As manifestações de junho e o impeachment de Dilma Rousseff ajudaram a confundir o diagnóstico, mas a verdade é que, para além dos esquemas de corrupção petistas, o eleitor que antes votava no PSDB, e por osmose passou a eleger o PT, já demonstrava cansaço dessa conversa. Nosso “deu no que deu” não poderia ter sido mais sintomático: se Dilma se reelegeu com 54 milhões de votos, Bolsonaro, apenas quatro anos depois, venceu com 57 milhões.
O tempo passou, mas pouca coisa mudou.
Vive-se sob o jugo de um cartel de visão de mundo única e virtuosa, disposto a
impor seus antolhos ideológicos. Os que se atrevem a questioná-lo pressentem a
mesma expectativa de um impala quando se arrisca a chupitar às margens de um
rio em plena savana. Convém ficar atento, o ataque em bando é garantido.
Tratando-se de política, vale dizer que é
impossível desconsiderar o retrocesso civilizatório patrocinado pelo governo de
Jair Bolsonaro. Sob seu comando, as instituições são diuturnamente solapadas e,
não bastasse seu despreparo ao lidar com os desafios domésticos, a rudeza para
tratar de temas internacionais a cada dia avacalha mais nossa imagem no cenário
global. Tudo isso é verdade, porém nem os maiores transtornos que uma gestão
tão calamitosa é capaz de provocar podem justificar os danos provocados pelo
debate pasteurizado.
Nossos cruzados do bem não se dão conta,
mas essa ira santa foi ingrediente fundamental para que Jair Bolsonaro e tantos
outros na sua esteira alcançassem o poder. Será em boa parte graças a ela que
tudo se encaminha para mais um embate eleitoral deprimente sob todos os
aspectos no fim do ano, que deverá tornar as conversas e a própria convivência
ainda mais insuportáveis.
Desgraçadamente, essa sanha por uma
oportunidade mínima que seja de posar como paladino moral não se limita à seara
política. A convocação da seleção brasileira, o relaxamento de medidas
restritivas à pandemia, a guerra na Ucrânia, até a compra do Twitter, tudo vale
desde que enseje autoelogio e movimentos de manada.
Para além de extremos como a defesa de
regimes de força, volta da ditadura ou pôr em risco a vida de milhões, como
ocorreu durante o momento mais difícil da pandemia, convém aos ensimesmados
entender que, fora de suas bolhas, a vida real admite divergências. E que quem
se opõe a suas vontades nem sempre é indigno, detestável ou deplorável.
Seria uma reflexão fundamental para
entendermos o caminho percorrido até aqui e o que desejamos para nosso futuro,
porém talvez seja pedir demais esperar que seja encarada com a devida
franqueza.
No fim das contas, a polarização está
sempre aí, ligeira, para simplificar dilemas que não cabem numa postagem de
rede social e, ainda mais importante, eficiente na construção de personagens de
virtude moral acima de qualquer suspeita.
* Jornalista
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