segunda-feira, 11 de abril de 2022

Fernando Gabeira: O que restou do nosso amor?

O Globo

Não costumo escrever sobre futebol nem discutir política no Flamengo, onde nado há quase 30 anos. Às vezes, no passado, um petista questionava minhas posições. E eu dizia: “Vamos nadar, a água está ótima”. Depois veio um bolsonarista, com ácidas críticas a meu trabalho na TV. E eu dizia: “Vamos nadar, a água está ótima”.

Excepcionalmente, escrevi um artigo sobre o Flamengo e o Brasil. O futebol do clube avançou muito em 2019, derrubando vários mitos. Afirmei que era um exemplo para o Brasil, cujo crescimento era curto e irregular, um voo de galinha.

Hoje bato na boca. A estrutura profissional montada pela equipe europeia de Jorge Jesus foi embora. E a galinha pousou. Os cargos foram substituídos por critérios políticos e de amizade. Como na canção: É necessário uma viração pro Nestor/Que está vivendo em grande dificuldade.

Na nova temporada, os jogadores voltaram mais gordos das férias. Perderam o impulso do atleta de ponta de se superar a cada jogo.

O diretor de futebol resolveu se candidatar a vereador. Não percebeu que, ao acumular cargos, enganaria seus eleitores ou a torcida, talvez ambos.

O salto alto com que entravam em campo foi se desgastando com o tempo, hoje mal se arrastam.

Como se não bastasse, o presidente do clube se tomou de amores pelo bolsonarismo. Ao odor da decadência, fundiu-se o cheiro forte de uma visão política que não carrega embrulho nem fala com pobre, alheia ao torcedor que gasta parte de seu salário para ir ao Maracanã e perder parte da noite na volta para casa.

Daí o grito uníssono na arquibancada: “Acabou o amor, acabou o amor”. Por que resistiria diante de milionários entediados que se recusam a correr em campo?

É verdade que trouxeram um novo técnico da Europa, disposto a montar a mesma estrutura profissional do passado. Agora, é um pouco tarde. Além de um novo trabalho, é preciso um pouco de cintura, algo que quase nunca têm os europeus.

As estrelas querem grandes salários e pouquíssimos sacrifícios. Não aceitam novas regras, mudanças. Flamengo e Brasil se parecem muito. Torcedores e povo são seu grande potencial. Os dirigentes não ajudam.

O Congresso apega-se a um orçamento secreto como um cão feroz rói um osso. Os diretores do clube navegam num orçamento bilionário, jogando dinheiro fora, pagando bons salários a jogadores inúteis, fortunas para estrelas sem alma.

Não há a mínima preocupação com eficácia. Todos têm mandato e seguirão abraçados nele até o último dia.

Um fio de esperança são as eleições. Sempre é possível mudar algo. Mas será que muda mesmo? Ou estamos condenados aos rotineiros voos de galinha, tanto no futebol como na economia nacional?

Minha hipótese é que não há nada de errado com cada um de nós, mas sim com essa atmosfera irrespirável de mediocridade. Ah, os brasileiros, costumamos dizer. Mas os brasileiros jogam na Europa, enquadram-se nos esquemas técnicos, correm como loucos, você não distingue ninguém pela preguiça em se mover em campo. Há uma outra intensidade. E dizem que lá é o Velho Mundo.

Nossos ciclos de vida talvez sejam mais curtos. Do movimento pelas Diretas Já que tanto prometia, caímos nas mãos da extrema direita em apenas quatro décadas.

Talvez não seja o voo da galinha o que melhor nos descreva. A borboleta, quem sabe, ou mesmo a poesia de Vinícius: A felicidade é como a gota/De orvalho numa pétala de flor/Brilha tranquila/Depois de leve oscila/E cai como uma lágrima de amor.

Desde que não acabem as lágrimas, sempre haverá novos e furtivos amores, pelo Flamengo e pelo Brasil.

Mas é inevitável lembrar que não precisa ser assim, não estamos condenados a carregar, incessantemente, nossa pedra ao alto da montanha como um herói grego.

 

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