O Globo
Quentin Tarantino chocou multidões ao interferir
na história e executar Adolf Hitler em “Bastardos inglórios”. A narrativa vinha
numa toada de cinebiografia, espionagem clássica, quando de repente o diretor
praticou vingança catártica ao perpetrar um bem-sucedido (imaginário) atentado.
Pode-se dizer que não foi um assassinato,
mas um justiçamento.
Causou estranheza. Mas, claro, mesmo em
discordância com a linha histórica, difícil quem não tenha internamente sorrido
ao ver o déspota crivado por balas.
A arte existe porque a vida não basta,
dizia categoricamente Ferreira Gullar. A imaginação serve assim como um bálsamo
ou um discreto regozijo diante da ingrata realidade.
Tratando-se da realidade política
brasileira, chame-a pela alcunha correta —rematada tragédia, com lances de
humor mórbido.
Ao olhar a História, não tão distante,
apenas a republicana basta, se percebe como os capítulos são escritos com
poucos avanços e funestos atrasos. O roteirista da “Comédia Brasil”, talvez por
ser mal pago, oferece desfechos canhestros, inverossímeis em sua canastrice.
No passado recente se esconde a resposta à
dúvida — em que momento começou a danação?
Até hoje se pergunta por que Fernando
Henrique Cardoso, mesmo avisado por gente séria como Mário Covas, insistiu em
bancar o instituto da reeleição. Ali talvez estivesse a salvação de um povo tão
deixado à margem. FH não teria sido reeleito; idem Lula; e, principalmente,
Dilma estaria condenada a não ser nada além de Rousseff — no caso, isso já é
lucro. Imagine quantos dissabores sua ausência teria provocado no Bozo e em
Eduardo Cunha.
Ambos, sem Dilma, são como um Bozo sem
Lula, em 2018 —ou, 2022, um Lula sem Bozo: a morte da imaginação.
Covas insistia que o Brasil não tinha tradição — educação? —para suportar a reeleição. Você olha o passado e descobre quantos problemas não teriam ocorrido caso seu alerta fosse ouvido.
Com certeza, a audiência seria poupada de
ter um presidente entusiasta da tortura e da ditadura e de um ex querendo
esconder sob o colchão um desvio numa única empresa que ultrapassa R$ 6 bilhões
só no dinheiro devolvido.
O arco brasileiro da História evidencia
como o segundo mandato é quase sempre uma tragédia. Embora reeleito, FH viu seu
governo reduzido a um quarto e sala; Lula se saiu melhor porque escondeu seu
desarranjo econômico e passou o problema para a frente; Dilma, sem muitas
delongas, engarrafou o vento.
O brasileiro vaia minuto de silêncio, mas
tem o coração mole. Oswald de Andrade dizia que o Brasil é um país cheio de
gente dando adeus. Daí se compreende a empatia com as tragédias e como elas por
vezes santificam maus atores. Diante de um atoleiro de corrupção, Getúlio
Vargas sacou o revólver e rapidamente passou de acusado a acusador. A
brutalidade de seu suicídio, embora friamente pensado, transformou seus
equívocos em qualidades e foi capaz de inaugurar estranhíssimo pensamento
político. O trabalhismo possui a profundidade de clara de ovos.
No Brasil, a tragédia purifica. Serve para
cozimento de ideias fora do lugar. Ao não criticar o instituto da reeleição,
perdoaram-se os métodos de manutenção no poder — uso da máquina pública, mimos
para setores organizados e a redução do discurso político, deixando de ser transformador
para se tornar somente reacionário.
Logo nas primeiras páginas de “M — O homem
da Providência”, de Antonio Scurati, “romance documental” sobre Benito
Mussolini, há a descrição de sua área de trabalho. Neste momento, o déspota
padece de terríveis dores abdominais e flatulências intermináveis, resultado de
brutal prisão de ventre. O cheiro no recinto é pestilento, e seu mau hálito
aterroriza os confrades.
Num dos cantos da sala, ao lado do
genuflexório, se encontram centenas de santinhos presenteados pelas eleitoras
carolas e igual quantidade de medalhas de bravura ofertadas pelos homens da
guerra.
A oração a tudo perdoa —sugere o altar de
Mussolini. Até o assassinato de seus inimigos políticos, a construção da
mentira e a catequização pelo medo. As violentas milícias fascistas, a
perseguição aos jornalistas e à oposição, a queima de arquivos —todas as
atrocidades podem ser perdoadas porque se luta pela causa do bem.
No caso italiano, a conversão forçada se
dava pela violência física, pela transformação do adversário em verdugo
(“comunista!”) e pela redução do horizonte a um minguado futuro de ordem e
progresso. Criava-se o caos para oferecer depois a bonança administrada.
A possibilidade de reeleição no Brasil,
dada a má educação alertada por Covas, afunilou as visões de futuro,
desestimulou o surgimento de novos quadros e reduziu qualquer pleito à
consagração de platitudes. Escondem-se os problemas, e se algum ousado trouxer
solução será execrado, desqualificado.
O Brasil, entorpecido pelas palavras de
ordem, deixou de pensar e acostumou-se a ser comprado por isenções, bolsas,
Refis, orçamentos secretos, auxílios, enfim, migalhas momentâneas.
Tanto se fez que o único ato de coragem é
deixar de dar o dízimo ao pastor (do MEC).
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