O Estado de S. Paulo
Para certos ideólogos conservadores, a
Europa ocidental – e a oriental dela dependente ou associada – seria incapaz de
responder a uma invasão russa.
Tornou-se um ponto comum de certo
pensamento conservador considerar o Ocidente como decadente. Estaríamos no fim
de um tipo de civilização, que se esgotaria no niilismo, na autossatisfação e
no egoísmo, resultantes do abandono dos valores tradicionais e religiosos. Tal
pensamento terminou se desenvolvendo de uma forma política e ideologicamente
marcante na Rússia, baseando-se em sua própria história e tradição e, em
particular, na Igreja Ortodoxa. Para esses ideólogos, estaria aí o alvorecer de
uma nova civilização, superior à ocidental, devendo, porém, ainda enfrentar o
poderio econômico e militar americano, aliando-se a outros Estados, como o
chinês e o islâmico, culturalmente diferenciados e alternativos.
Mais especificamente, a Europa ocidental – e a oriental dela dependente ou associada – seria incapaz de responder a uma invasão russa, por estar imersa no hedonismo, no individualismo, na liberdade de escolha e no questionamento dos valores. Estados democráticos fundados e organizados em torno da ideia de bem-estar social tornam-se inaptos para a guerra, não abraçam o patriotismo, cedendo para conservarem o seu status quo. O indivíduo impera sobre tudo, com o consequente abandono das formas de vida comunitária, não sabendo resistir a pressões externas. Sempre procurarão a acomodação e a negociação diplomática, contanto que o seu bem-estar não seja prejudicado.
Os russos, ao contrário, conforme ao
pensamento eurasiano, seriam um povo culturalmente diferenciado, baseado no
desprezo da democracia e do individualismo, porque, para eles, o primado dos
valores comunitários e religiosos seria outro, hierárquico, obediente ao Estado
e ancorado numa elite que prima por ser a representação última desses valores.
Em sua história intelectual, chegaram inclusive a considerar Moscou como o
lugar de uma “nova Roma”, uma “nova Jerusalém”, em sua luta contra o
anti-Cristo. A vida como princípio seria diferente da ocidental, na medida em
que reconhecem, também, o valor da morte para a Pátria em guerra, com o
consequente elogio das virtudes guerreiras. Enquanto os ocidentais evitam a
todo custo mortes no campo de batalha, os russos a enfrentariam com galhardia.
Qual não deve ter sido a surpresa de
Vladimir Putin, do seu serviço secreto e dos seus militares quando o Ocidente
não se acovardou na invasão da Ucrânia e reagiu prontamente, tanto enviando
armamentos sofisticados quanto impondo pesadas sanções econômicas? Sanções que
são, assinale-se, pesadas não apenas para a Rússia, mas também para os países
ocidentais, europeus principalmente, com cortes em suas fontes tradicionais de
abastecimento, como o gás, o petróleo, o carvão e produtos alimentares como o
trigo. Ou seja, na defesa dos seus valores, os ocidentais tomaram decisões que
afetam seu próprio nível de vida, sendo eles igualmente obrigados a se
transformarem. Ressalte-se que assumiram seus próprios princípios,
assegurando-os. Até empresas privadas, em movimento inédito, optaram por fechar
suas filiais russas, seguindo pressões da própria opinião pública ocidental.
Militarmente, talvez os ocidentais poderiam
ter se arriscado mais na defesa da Ucrânia, enviando aviões, por exemplo, e
navios de guerra, ou mesmo intervindo com tropas. Contudo, forçoso é reconhecer
que tais medidas poderiam precipitar uma terceira guerra mundial, com
utilização de armamentos nucleares, com consequências planetárias
imprevisíveis. A opção escolhida foi circunscrever o conflito ao território
ucraniano, não sem antes o envio de mensagens explícitas de que outros países,
membros da Otan, seriam defendidos militarmente. Uma fronteira foi claramente
circunscrita. E isso, frise-se, com amplo apoio da opinião pública destes
países, que disseram um rotundo não à ditadura, à autocracia e ao emprego
arbitrário e injustificado da violência.
Para Putin e seu grupo, outra quebra de
expectativa residiu na reação dos ucranianos. Sendo eslavos e predominantemente
ortodoxos, era de esperar que receberiam de braços abertos os irmãos
“culturais” russos. Foram recebidos a bala, demonstrando em suas ações uma
força que abalou o Exército russo, que terminou mostrando falta de preparo,
manobras militares inconsistentes e falta de coesão moral. Pelo que lutam os
soldados russos? Nem eles sabem. Pelo que lutam os soldados e a população
ucraniana? Pelo seu país e por suas liberdades. Os russos também acharam que a
Ucrânia carecia de um líder importante, apostando em que um ex-comediante
jamais poderia tornar-se um ator dramático, inclusive, trágico, de primeira
grandeza.
Para Putin e seu grupo, era insuportável
que a Ucrânia estivesse se ocidentalizando, optando por outros valores, por seu
modo de vida, usufruindo de liberdades e querendo ingressar na União Europeia e
na Otan. Que um povo eslavo, de história comum à dos russos, queira isso veio a
ser algo intolerável. Foram seus próprios valores e princípios que foram postos
em questão.
*Professor de filosofia na UFGRS.
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