Valor Econômico
É arriscado escolher candidatos com base em
perfis superficiais
Com a proximidade das eleições, vale pedir
ao leitor um exercício: votar em um dos três candidatos cujos perfis estão
resumidos abaixo.
O primeiro teve poliomielite e demonstra
dificuldade para caminhar, é hipertenso e anêmico, mente quando lhe convém e
consulta astrólogos sobre política. Fuma muito e trai a mulher.
O segundo tem sobrepeso, pressão alta, já
sofreu dois ataques cardíacos e perdeu três eleições. É difícil trabalhar ao
lado dele, porque fuma charutos sem parar. Toda noite toma champanhe, vinho ou
uísque e dois calmantes para dormir.
O terceiro é um cabo herói de guerra
condecorado que trata bem as mulheres, ama animais, não fuma e só bebe uma
cerveja em ocasiões especiais.
Esse exercício de voto foi feito a seus alunos pelo professor Martin, interpretado pelo ator dinamarquês Mads Mikkelsen, no filme “Druk - Mais uma Rodada”, Oscar de melhor filme internacional em 2021. E qual dos três candidatos foi escolhido pelos alunos? Todos disseram que votariam no terceiro. Aí o professor Martin revelou os nomes dos candidatos.
O primeiro nome é do presidente dos EUA
entre 1933 e 1945, Franklin Roosevelt, que tirou o país da “grande depressão” e
o conduziu à vitória na Segunda Guerra Mundial.
O segundo é Winston Churchill, estadista
britânico, um dos políticos mais importantes da história do Reino Unido, prêmio
Nobel de Literatura em 1953 pela monumental obra “Memórias da Segunda Guerra
Mundial”. Foi o artífice europeu da vitória aliada na guerra.
O terceiro é Adolf Hitler, o líder nazista
que levou à morte 60 milhões de pessoas na Segunda Guerra Mundial e que
dispensa mais apresentações.
O filme, dirigido pelo dinamarquês Thomas
Vinterberg, é polêmico, porque defende, no início, uma teoria que passa longe
do “politicamente correto”: manter um nível constante de álcool no sangue
melhora a vida e o desempenho das pessoas. Ao longo do filme, porém, os quatro
professores que aderiram à prática percebem que nem tudo é tão simples.
O exercício do professor Martin indica o
quão difícil é escolher políticos com base em perfis superficiais. Os
brasileiros já cometeram vários erros na escolha de presidentes, elegendo
incompetentes ou antidemocráticos. De tempos em tempos, um “salvador da
pátria”, geralmente com promessas de eliminar a corrupção, é galgado ao comando
o país.
Getúlio Vargas, mesmo após ter sido ditador
durante 15 anos, assumiu em 1951 pelo voto e não suportou pressões políticas e
acusações de corrupção: suicidou-se em agosto de 1954.
Jânio Quadros encantou o país com sua
vassourinha mágica que iria “varrer a bandalheira” e suas falsas caspas no
paletó. Renunciou em 1961 por incompetência política, depois de seis meses no
cargo e abriu espaço para a posse do vice João Goulart e para o golpe militar
que imporia ditadura de 20 anos ao país.
Fernando Collor, desconhecido governador de
Alagoas, ganhou o voto popular com suas promessas de caça aos marajás, assumiu
em 1990 e sofreu impeachment em 1992, acusado de corrupção.
Dilma Rousseff, reeleita em 2014, também
foi afastada em 2016, sob a acusação de irresponsabilidade fiscal (para a
esquerda, foi um golpe parlamentar).
Jair Bolsonaro foi eleito em 2018, em meio
à avalanche anticorrupção da Lava-Jato. Hoje, segundo pesquisa Datafolha, é
rejeitado por 55% dos eleitores. Só no período da pandemia foi acusado de cometer
nove crimes por CPI do Senado. Permanece no cargo amparado pelas muralhas da
PGR e da presidência da Câmara. Vai tentar a reeleição.
As escolhas equivocadas são um risco
inerente à democracia, muito menor, certamente, do que o das autocracias ou ditaduras.
As experiências eleitorais brasileiras recentes mostram que erros ocorrem mesmo
em casos de candidatos que já tenham exercido cargos executivos. Jânio Quadros
e Fernando Collor, por exemplo, haviam sido governadores, mas não tinham
maturidade política para ocupar a Presidência. Comportamentos aparentemente
conservadores ou progressistas, “politicamente corretos”, não garantem que o
candidato venha a ser um bom gestor e, principalmente, um comandante inflexível
no comprometimento com a democracia e com a busca do bem-estar dos cidadãos.
Propostas e comportamentos antidemocráticos
do passado não podem ser relevados pelo eleitor com desculpa ou esperança de
que o candidato mudará de ideia depois de eleito. “De onde menos se espera, daí
é que não sai nada”, já ironizava o Barão de Itararé.
Promessas milagrosas, obviamente, nunca são
cumpridas. Populistas radicais, à direita e à esquerda, que vendem rigorosa
austeridade fiscal (“é proibido gastar”) ou impagáveis benesses sociais, em
geral cometem estelionato eleitoral. E centristas “em cima do muro” tendem a
ser inoperantes.
Quem ainda sonha com a eleição de um
“salvador da pátria”, da primeira, segunda ou terceira via, poderia refletir um
pouco sobre o exercício do professor Martin e sobre a surrada frase de
Churchill, em 14 de maio de 1940, em plena Segunda Guerra, quando pediu à
Câmara dos Comuns um voto de confiança a seu governo: “Nada tenho a oferecer
senão sangue, trabalho, suor e lágrimas.”
Essas quatro coisas fazem muita falta ao
Brasil e foram escassas nos últimos anos, especialmente as lágrimas
governamentais durante a pandemia. O problema não é polarização, mas qualidade
e compaixão dos que ocupam os polos.
Saneamento e democracia
Já que estamos juntando cenas de cinema a
escolhas democráticas, é oportuno lembrar uma passagem do “Tigre Branco”, filme
indiano do diretor Ramin Bahrani, lançado em 2021. Um motorista do interior do
país, narrador e protagonista do filme, a certa altura diz: “Se eu governasse a
Índia, faria primeiro o saneamento básico e depois a democracia”. É possível
entender a opção do motorista, porque a Índia, a maior democracia do mundo, tem
deficiências assustadoras na área de saneamento básico.
A Índia, porém, tem uma sociedade
considerada cruel principalmente por causa do sistema de castas, não oficial,
que na prática impede a ascensão social de grande parte de sua população. Mas
não há dúvida de que, com 1,3 bilhão de habitantes, a situação do saneamento
seria ainda pior sob ditaduras ou autocracia
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