O Globo
Democracia é “um regime no qual o eleito
governa, e o perdedor vai para casa”, de acordo com a definição de Adam
Przeworski no livro “Crises da democracia”. Mas, para tal assertiva ser válida,
é necessário que os competidores aceitem a legitimidade dos procedimentos. Não
parece ser o caso das eleições de 2022. Reportagens recentes mostraram que as
Forças Armadas enviaram cerca de 80 questionamentos a respeito do funcionamento
das urnas eletrônicas e do sistema de contagem de votos.
A participação das Forças Armadas no
processo eleitoral é necessária e salutar em termos de logística. São elas que
transportam as urnas aos lugares mais remotos do Brasil profundo. Mas elas não
fazem parte do sistema de accountability, uma vez que suas atribuições estão
expressamente definidas no texto constitucional. A atração das Forças Armadas
para o exercício de um papel que não é de sua natureza é fruto do saudosismo de
Bolsonaro em relação a uma época em que urnas e tanques se misturavam.
Bolsonaro é um exemplo claro de crimes de responsabilidade que passaram impunes diante de um Congresso “complacente” e um Supremo Tribunal Federal (STF) “contido”. O peso da função representativa do primeiro não resistiu às benesses da caneta, enquanto o segundo optou por não “usurpar” a competência de outro Poder. Por força dessas circunstâncias, Bolsonaro, que violou a Lei de Segurança Nacional quando participou de atos que pediram o fechamento do STF e do Poder Legislativo, não apenas se manteve no poder, como participará de um pleito que ele mesmo questiona. Bolsonaro certamente foi beneficiado pelas incertezas de dois vetores: em seu lugar seria empossado um general, e quem poderia ocupar as ruas em caso de impeachment.
Numa democracia sadia, tanques e urnas não
se misturam. Quando isso acontece, bom sinal não é. Além do mais, soa com muita
estranheza cogitar uma apuração “paralela” controlada pelas Forças Armadas,
pois até aqui não se sabe se existe um acordo preventivo entre o STF e elas
para reduzir a margem para questionamento em caso de derrota de Bolsonaro ou
se, de fato, os arroubos do presidente contaminaram a caserna.
O que temos de concreto no momento é que
será uma eleição atípica no conjunto de pleitos presidenciais realizados de
1989 para cá, não só pelo grau de beligerância do atual mandatário, mas também
pela zona cinzenta que cobre o papel das fardas.
Já foi dito no passado, pelo Doutor
Ulysses, que “baioneta não é voto, e cachorro não é urna”. É incrível que isso
precise ser lembrado.
*Cientista político e
professor associado da Universidade Federal de Santa Maria
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