Folha de S. Paulo
Minar confiança entre pais e escola é fazer
dos filhos bucha de canhão de militância política
Nunca imaginei que o professor de geografia
de esquerda que tive no segundo colegial fosse parte de um plano para implantar
o comunismo no Brasil. Nem muito menos os professores de biologia, orientadores
e psicólogos que se encarregaram da educação sexual desde o ginásio. Se fossem,
não foi um plano muito eficaz. A maioria dos meus colegas não aderiu ao
comunismo e não me consta que nem um único seja "contra a família".
Boa parte deles, aliás, vota em Bolsonaro.
Imagine que terror ensinar para inocentes crianças de 14 anos que se deve
respeitar as diferentes orientações sexuais? Ou que os jovens devem transar de
camisinha para impedir ISTs e gravidez? Infelizmente, é justamente esse tipo de
conteúdo que está sob ataque cerrado de políticos, líderes religiosos e pais
ansiosos pelo Brasil inteiro. É o que mostra o relatório "‘Tenho medo,
esse era o objetivo deles’: esforços para proibir a educação sobre gênero e
sexualidade no Brasil", publicado pela Human Rights Watch.
Desde 2014, foram 217 projetos de lei
(federais, estaduais e municipais) feitos para barrar "doutrinação"
em sala de aula e proibir educação sexual e de gênero. Muitos são aprovados e
só caem graças ao STF. Isso conta com apoio direto do governo federal, que só
se interessa por educação quando é para estimular a caça às bruxas.
Chegamos ao ponto da então ministra dos Direitos Humanos criar um canal direto
do governo federal para a denúncia de professores que atentem "contra a
moral, a religião e a ética da família". Stalin —para ficar nas
referências comunistas— não faria melhor.
Violência doméstica, abuso sexual, ISTs, gravidez indesejada, bullying. São
alguns dos males que a educação sexual consegue prevenir e denunciar. Muitas
crianças e jovens só se descobrem vítimas de abuso sexual ou violência —no seio
da família, na igreja, na própria escola— graças às aulas de educação sexual.
As iniciativas dentro da política formal —governo e Legislativo— são apenas a
ponta do iceberg. A perseguição hoje em dia não precisa do governo. Basta um
trecho de aula —ou ainda uma proposta de tarefa— fora de contexto, embalada por
um discurso de denúncia daquele "absurdo", um influenciador
inescrupuloso, um grupo de pais politizado, e o estrago está feito. Professores
recebem ameaça de morte por falar sobre métodos contraceptivos ou violência
contra a mulher, algo que todo adolescente brasileiro, sem exceção, deveria
conhecer. O resultado, apontado pelo relatório: professores ficam intimidados e
omitem temas importantes.
O grupo de WhatsApp de pais da turma é uma ferramenta poderosa. É um jeito de
os pais se conhecerem melhor, de acompanharem juntos o andamento da escola.
Como pai, isso me ajuda. Acompanhar as atividades dos filhos, trocar impressões,
conversar com eles, às vezes até criticar ou apresentar contraponto a algo que
venha da escola, é contribuir com a educação. E, quando se acredita que algo
grave aconteceu, conversar antes de tudo com a direção. Tudo isso contribui com
a educação. Tornar esse grupo uma câmara de eco de histeria moral e denúncia é
enterrá-la.
Vivemos na sociedade uma crise de confiança, estimulada por aqueles que ganham
semeando a desconfiança infundada. A educação de crianças e jovens depende da
relação de confiança entre pais e escola. Miná-la com leis de mordaça e com
caça às bruxas é fazer dos próprios filhos bucha de canhão de militância
política.
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