sexta-feira, 27 de maio de 2022

José de Souza Martins*: Incertezas do ensino doméstico

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Os pais podem inventar a educação que querem dar a seus filhos, mas não podem reinventar a sociedade na qual seus filhos terão que viver

Diferentes sociedades reinventam a educação de conformidade com os desafios da circunstância e com o surgimento da consciência de que os conteúdos e modos de educar vigentes têm insuficiências que pedem inovações. Os que querem a educação escolar dos filhos em casa, a querem porque estranham que a educação na escola não faça deles cópias do que acham que eles próprios são.

O problema é que, se a inovação não der certo, porque mais resultado de palpite do que de conhecimento especializado, multidões de crianças e adolescentes serão prejudicadas e ficarão despreparadas para viver na sociedade tal qual ela é.

Os pais podem inventar a educação que querem dar a seus filhos, mas não podem reinventar a sociedade na qual seus filhos terão que viver. É a escola convencional que, além de educar, pode socializar, na convivência cotidiana com os diferentes, para os desafios cotidianos das mudanças da realidade social.

É possível que os militantes da causa do ensino doméstico estejam infelizes com a educação brasileira porque não tem sido ela fábrica da sociedade por eles concebida. Querem mastigar para os filhos as verdades que a vida não confirma.

As sociedades envelhecem e rebrotam, o que exige a socialização adequada das novas gerações para o novo tempo e a ressocialização dos que envelheceram para que compreendam a sociedade que os torna ultrapassados. Para superar o engano do que lhes parece o fardo da idade em face das levezas do mundo de filhos e netos. E compreender seu familismo de refúgio. A sociabilidade do que Goffman define como a das instituições totais tende a se desencontrar com a realidade das funções sociais que devem cumprir.

Isso pode acontecer com a família que reproduza padrões de instituição total, quando se torna família educadora no recinto fechado do lar para ser agência de socialização de seus imaturos. A família tende a ser uma instituição autoprotetiva, conservadora, o que é bom enquanto guardiã de valores que são os que nela podem dar sentido ao afã da continuidade na diferença entre as gerações. Para que os filhos se entendam com os pais e avós. Porém, sem ser deles cópias fora do tempo e de lugar.

A proposta da educação doméstica no Brasil pretende defender as novas gerações contra as ideologias que supostamente contrariam a prisão conservadora das gerações mais velhas. Mas a aspiração dessa modalidade de educação é tão ideológica e problemática quanto as outras. Ideologias são modos mutilados de concepção da realidade. A da educação doméstica pressupõe que filhos e netos são seres modeláveis segundo o imaginário de uma geração que foi derrotada em sua aspiração de manter seus filhos e netos imobilizados numa sociedade fantasiosa que nunca existiu.

A medida aprovada pela Câmara pressupõe que os pais educadores devem ter curso superior. Pessoas com curso superior não são necessariamente capacitadas para educar. Médicos, advogados, engenheiros e outros diplomados por escolas superiores podem ser ótimos profissionais, provados no exercício das respectivas profissões. Os menos capazes são descartados pelo próprio mercado de trabalho.

Mas que sejam ótimos na profissão não quer dizer que o sejam na educação. Além do que, educação não é só ensinar, dizer ao outro as verdades do conhecimento. Educação em grupo, antes de tudo, é por meio de uma sociabilidade necessária à formação das novas gerações. É sobretudo uma técnica complementar de socialização dos imaturos para dar aos filhos a oportunidade de saberem mais do que os pais e de serem melhores do que os pais. Sobretudo, de terem também a oportunidade de ser diferentes dos pais. A sociedade dos filhos nunca é a mesma sociedade dos pais no mundo moderno.

De vários modos, a família educadora tem grandes limitações tanto para a educação atualizada de seus filhos quanto para socializá-los de maneira apropriada numa sociedade em mudança. No âmbito da educação propriamente dita, todos os campos do conhecimento passam hoje por transformações cotidianas profundas. Não é incomum que profissionais de todos eles se tornem obsoletos dentro de um tempo, a depender da qualidade e do tipo de curso superior que fizeram. Quem é avô e pai sabe o quanto netos e filhos mal saídos da adolescência sabem muito mais sobre as áreas mais conspícuas e de mais rápida atualidade científica, como no caso da informática e da computação, dominadas até mesmo por novas linguagens e novos âmbitos lógicos.

Novas gerações são sujeitos sociais de desafios de compreensão do mundo e de participação no mundo, cada vez mais mundo de diferenças e não mundo de repetições de filhos que repetem os pais, mas de filhos que educam os pais.

*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).

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