Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Os pais podem inventar a educação que
querem dar a seus filhos, mas não podem reinventar a sociedade na qual seus
filhos terão que viver
Diferentes sociedades reinventam a educação
de conformidade com os desafios da circunstância e com o surgimento da
consciência de que os conteúdos e modos de educar vigentes têm insuficiências
que pedem inovações. Os que querem a educação escolar dos filhos em casa, a
querem porque estranham que a educação na escola não faça deles cópias do que
acham que eles próprios são.
O problema é que, se a inovação não der
certo, porque mais resultado de palpite do que de conhecimento especializado,
multidões de crianças e adolescentes serão prejudicadas e ficarão despreparadas
para viver na sociedade tal qual ela é.
Os pais podem inventar a educação que
querem dar a seus filhos, mas não podem reinventar a sociedade na qual seus
filhos terão que viver. É a escola convencional que, além de educar, pode
socializar, na convivência cotidiana com os diferentes, para os desafios
cotidianos das mudanças da realidade social.
É possível que os militantes da causa do ensino doméstico estejam infelizes com a educação brasileira porque não tem sido ela fábrica da sociedade por eles concebida. Querem mastigar para os filhos as verdades que a vida não confirma.
As sociedades envelhecem e rebrotam, o que
exige a socialização adequada das novas gerações para o novo tempo e a
ressocialização dos que envelheceram para que compreendam a sociedade que os
torna ultrapassados. Para superar o engano do que lhes parece o fardo da idade
em face das levezas do mundo de filhos e netos. E compreender seu familismo de
refúgio. A sociabilidade do que Goffman define como a das instituições totais
tende a se desencontrar com a realidade das funções sociais que devem cumprir.
Isso pode acontecer com a família que
reproduza padrões de instituição total, quando se torna família educadora no
recinto fechado do lar para ser agência de socialização de seus imaturos. A
família tende a ser uma instituição autoprotetiva, conservadora, o que é bom
enquanto guardiã de valores que são os que nela podem dar sentido ao afã da
continuidade na diferença entre as gerações. Para que os filhos se entendam com
os pais e avós. Porém, sem ser deles cópias fora do tempo e de lugar.
A proposta da educação doméstica no Brasil
pretende defender as novas gerações contra as ideologias que supostamente
contrariam a prisão conservadora das gerações mais velhas. Mas a aspiração
dessa modalidade de educação é tão ideológica e problemática quanto as outras.
Ideologias são modos mutilados de concepção da realidade. A da educação
doméstica pressupõe que filhos e netos são seres modeláveis segundo o
imaginário de uma geração que foi derrotada em sua aspiração de manter seus
filhos e netos imobilizados numa sociedade fantasiosa que nunca existiu.
A medida aprovada pela Câmara pressupõe que
os pais educadores devem ter curso superior. Pessoas com curso superior não são
necessariamente capacitadas para educar. Médicos, advogados, engenheiros e
outros diplomados por escolas superiores podem ser ótimos profissionais,
provados no exercício das respectivas profissões. Os menos capazes são
descartados pelo próprio mercado de trabalho.
Mas que sejam ótimos na profissão não quer
dizer que o sejam na educação. Além do que, educação não é só ensinar, dizer ao
outro as verdades do conhecimento. Educação em grupo, antes de tudo, é por meio
de uma sociabilidade necessária à formação das novas gerações. É sobretudo uma
técnica complementar de socialização dos imaturos para dar aos filhos a
oportunidade de saberem mais do que os pais e de serem melhores do que os pais.
Sobretudo, de terem também a oportunidade de ser diferentes dos pais. A
sociedade dos filhos nunca é a mesma sociedade dos pais no mundo moderno.
De vários modos, a família educadora tem
grandes limitações tanto para a educação atualizada de seus filhos quanto para
socializá-los de maneira apropriada numa sociedade em mudança. No âmbito da
educação propriamente dita, todos os campos do conhecimento passam hoje por
transformações cotidianas profundas. Não é incomum que profissionais de todos
eles se tornem obsoletos dentro de um tempo, a depender da qualidade e do tipo
de curso superior que fizeram. Quem é avô e pai sabe o quanto netos e filhos
mal saídos da adolescência sabem muito mais sobre as áreas mais conspícuas e de
mais rápida atualidade científica, como no caso da informática e da computação,
dominadas até mesmo por novas linguagens e novos âmbitos lógicos.
Novas gerações são sujeitos sociais de
desafios de compreensão do mundo e de participação no mundo, cada vez mais
mundo de diferenças e não mundo de repetições de filhos que repetem os pais,
mas de filhos que educam os pais.
*José de Souza Martins foi
professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento Ensaios
sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
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